O setor lácteo está apreensivo com as regras que passaram a vigorar no Brasil desde o último domingo. As instruções normativas 76 e 77, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), estabelecem e regulamentam padrões para a qualidade do leite cru refrigerado e para a produção, o transporte, o acondicionamento e a conservação do leite na propriedade rural e na indústria. Depois de terem sido publicadas em 30 de novembro do ano passado, a cadeia produtiva teve 180 dias para buscar as adequações e atender aos padrões de qualidade estabelecidos.
Conforme a Federação dos Trabalhadores na Agricultura no Rio Grande do Sul (Fetag/RS), a aplicação das regras deveria ser de forma gradativa, dando mais prazo para as adaptações. “Para nós, o ideal seria que o Mapa suspendesse as instruções normativas para a discussão com as entidades do setor”, defende o secretário-geral da Fetag/RS, Pedrinho Signori. O dirigente ressalta que a apreensão dos produtores está na necessidade de investimentos para atender às exigências, principalmente em virtude das oscilações no preço do leite ao longo dos meses.
Além disso, as deficiências nas estradas rurais e na energia elétrica são apontadas como impedimentos para que o produtor e a indústria alcancem os padrões exigidos, principalmente na temperatura e na Contagem Bacteriana Total (CBT) (veja no quadro). “Em muitos lugares, quando a ordenhadeira é ligada, o resfriador precisa ser desligado”, ressalta. Diante do cenário de mudanças, uma carta de cientização foi elaborada por diversas entidades do setor com o objetivo de informar as mudanças aos produtores que atuam com leite no Rio Grande do Sul.
Para Signori, há necessidade de uma ação conjunta do Estado e dos municípios para resolver as questões de infraestrutura, que são problemáticas em muitas localidades do interior e prejudicam o enquadramento das propriedades leiteiras às instruções normativas 76 e 77. O dirigente lembra que recente levantamento feito pela Emater/RS-Ascar aponta que 20 mil produtores de leite que forneciam para a indústria desistiram da atividade entre 2015 e 2017. “O temor é de que estas instruções normativas alavanquem ainda mais a falência dos produtores e o êxodo rural”, frisa.
Os pontos que causam apreensão
As instruções normativas 76 e 77 têm 103 artigos que dispõem sobre a qualidade do leite. Confira as principais mudanças:
- Na propriedade rural, o tanque refrigerador deve ter capacidade de resfriamento de até 4 graus em até três horas depois da ordenha;
- A temperatura do leite a ser recepcionado na indústria não poderá ser superior a 7 graus – atualmente, a margem é de 10 graus;
- Na Contagem Bacteriana Total (CBT) para o produtor, quando a média estiver acima de 300 mil unidades formadoras de colônia por mililitro (UFC/ml) por três meses consecutivos, a indústria deverá interromper a coleta. O produtor só poderá voltar a fornecer leite quando forem adotadas ações corretivas e ocorrer uma nova análise dentro do padrão;
- Na recepção do leite na indústria, a contagem de placas (CBT) não deve ser superior a 900 mil unidades formadoras de colônia por mililitro (UFC/ml);
- O teste para antibióticos no leite passou a ser de dois grupos para seis grupos testados;
- A assistência técnica deverá ser oferecida pela indústria para todos os produtores integrados, com um plano de qualificação definido pelo Ministério da Agricultura.
Fonte: Fetag/RS
Mais qualidade
O leite é a principal atividade na propriedade de Irineu José Kist, de 48 anos, em Linha Nova, no interior de Santa Cruz do Sul. Na área de 24 hectares, com o apoio da família, mantém um plantel de 80 animais da raça holandesa – atualmente são 55 em lactação. Para o produtor, apesar de as instruções normativas do Mapa causarem inquietação, é necessário que entrem em vigor em favor do crescimento do próprio setor. “Precisamos de qualidade para que nosso leite possa se tornar mais competitivo”, argumenta.
Para o produtor, com a implementação das regras, futuramente pode ser possível abrir o mercado de exportação para o leite nacional. “Vamos selecionar os produtores dos tiradores do leite”, define. Na atividade há mais de 20 anos, destaca que há tecnologia e conhecimento disponíveis para que os produtores, pequenos ou grandes, possam atingir os níveis exigidos. “Com mais qualidade, nosso leite vai até valer mais”, justifica. Com produção média de 1.100 litros por dia, atualmente Kist ganha em torno de R$ 1,50 por litro. “O preço teria de estar perto de R$ 2,00 para termos mais lucratividade”, cita.
Audiência em Brasília
A Fetag/RS solicitou ao deputado federal Heitor Schuch (PSB) a realização de audiência pública para tratar das instruções normativas 76 e 77, referentes a produção e venda de leite no País. Aprovada a solicitação na Comissão de Agricultura da Câmara, o debate acontecerá no dia 27 de junho, às 9 horas, em Brasília.
Atual estabilidade dos preços deve seguir até o fim do ano
Conforme o assistente técnico regional da Emater/RS-Ascar na área de bovinocultura de leite, Vivairo Zago, hoje o produtor gaúcho recebe, em média, R$ 1,28 por litro. “Produtores que têm quantidade maior, qualidade de acordo com a instrução normativa 77 e sanidade do rebanho (livre de tuberculose e brucelose), recebem bônus que pode chegar a R$ 0,10 por litro ou mais. Então, o valor pode chegar a R$ 1,40 nessas situações”, explica. O especialista ressalta que o preço do leite caiu em janeiro e fevereiro e voltou a subir em março e abril, mantendo-se estável até o momento. Os especialistas dizem que se manterá nessa faixa até o fim do ano.
Zago refere que a cadeia do leite passa por um período de transformação, principalmente no que diz respeito à profissionalização da atividade. “Permanece quem faz com eficiência e eficácia, seja grande ou pequeno produtor”, frisa. “Por exemplo, um bovinocultor familiar que produz 400 litros diários fatura em torno de R$ 15 mil por mês. Reduzindo 70% do custo, tem uma receita líquida de R$ 4,5 mil por mês, que é sua remuneração”. Em seu entender, o caminho não é penalizar o consumidor, que deixa de comprar leite e derivados quando os preços se elevam, mas produzir a valores competitivos e mirar na exportação.
Indústria quer prazo maior para adaptação
O presidente do Sindicato da Indústria de Laticínios e Produtos Derivados do Rio Grande do Sul (Sindilat), Alexandre Guerra, destaca que a indústria é sempre favorável à melhoria constante da qualidade do leite, até para que futuramente o Brasil possa se tornar exportador. No entanto, acredita que é necessário tempo para fazer uma evolução contínua e não tirar pessoas do processo produtivo. “Para que possamos ter o resultado desejado na aplicabilidade das novas instruções normativas, defendemos um período transitório maior”, justifica. A preocupação é com dificuldades estruturais enfrentadas pelo campo, como estradas e qualidade da energia elétrica. “São problemas além da indústria e do produtor”, alerta.
Guerra destaca que a principal preocupação é com as mudanças quanto à contagem bacteriana total do leite na plataforma – índice até então não contabilizado – e à temperatura de resfriamento e conservação do produto nas propriedades e no transporte. “A maioria das indústrias tem dificuldade para atingir a contagem bacteriana total de 900 mil neste momento, como define a nova lei”, afirma. O dirigente reforça que levantamento de pesquisadores da Embrapa Clima Temperado e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) revelam dados da atual situação dos laticínios e demonstram a possível falta de matéria-prima que pode decorrer da aplicação imediata das normas.