Um copo de leite canadense está cheio de cálcio, vitaminas, minerais e controvérsia política.
laticínios
Foto: Eugene Whelan, Ministro da Agricultura, sendo atacado pelos produtores de leite em 1976

Na maioria dos países ao redor do mundo, os grandes lobbies atuam para defender os setores que representam: petróleo, produtos farmacêuticos e tecnologia. Mas, no Canadá, o governo e os líderes políticos foram engolfados pela força do “Big Milk”, o lobby canadense dos laticínios, que despeja algo entre 62 e 93 milhões de dólares para manter relacionamentos no Parlamento do país.

Pesquisar a palavra “laticínios” no banco de registro de lobistas federais produz quase 7.000 resultados, com dezenas de empresas fazendo a presença do produtor de leite ser fortemente sentida. Na política canadense, não há como escapar do que a principal revista de assuntos atuais do Canadá (Maclean’s) apelidou de “cartel dos laticínios”.

Os esforços do lobby, ao longo das décadas, tiveram efeitos incrivelmente abrangentes. Desde 1972, o setor tem sido regulamentado por um conselho governamental denominado Comissão Canadense de Laticínios, com o emprego de uma poítica denominada de “Supply Management” (Gerenciamento de Suprimentos).

Um sistema controverso

O gerenciamento de suprimentos é uma política agrícola elaborada para permitir que os produtores de leite sejam adequadamente compensados ​​por sua produção, ao mesmo tempo em que cria uma oferta estabilizada para o consumidor canadense. Este sistema se baseia no controle de três determinantes principais: produção, preço e importação. Na prática, a política se resume fundamentalmente a permitir que a Comissão Canadense de Laticínios limite a produção, evitando que o leite seja ofertado livremente pelos produtores.

A Comissão Canadense de Laticínios é responsável por definir a quantidade total de leite a ser produzida – com base na previsão das necessidades dos consumidores – e, em seguida, determinar as quantidades específicas para os fazendeiros. Mas, nem todo fazendeiro pode produzir e vender leite. Eles precisam de uma cota, que é uma licença para produzir dentro do país, limitando sua participação a um círculo fechado de fazendeiros.

Existem apenas 16.000 fazendeiros autorizados a produzir e vender uma quantidade predeterminada de leite no Canadá, muito menos do que os 62.000 criadores de gado canadenses que não estão no sistema de gerenciamento de suprimentos.

No entanto, a Comissão Canadense de Laticínios não para de limitar os produtores. A fim de garantir a proteção de preços, em meio a quedas e instabilidade do mercado, o conselho estabelece um preço para os produtos lácteos que eles permitiram que fossem produzidos e, então, se encarrega de garantir que o produtos sejam distribuídos ao consumidor.

Esse parece ser um sistema regulatório perfeito. É bem protegido e até enraizado na lei canadense que diz: “Os produtores de leite devem ter autorização para cada litro de leite que vendem aos laticínios”. No entanto, há um fator subjacente que gera uma falha colossal: é um sistema que seria prejudicado por importações e concorrentes estrangeiros inundando o mercado canadense.

Assim, após a formação da Comissão Canadense de Laticínios, o Canadá rapidamente se tornou o lar de algumas das tarifas mais agressivas e caras do mundo. Hoje, os produtos lácteos, de produtores estrangeiros, estão sujeitos a uma taxação de quase 300% antes de serem disponibilizados ao consumidor canadense.

Essa proteção governamental, e a formação de um elaborado sistema anti-competição, começou na década de 1970, quando o primeiro-ministro Pierre Trudeau introduziu limites para o setor de laticínios, como resultado da superprodução. Seu governo pretendia equilibrar os níveis de produção com a demanda, para criar um mercado estável com preços controlados.

Esses movimentos provocaram indignação entre os produtores de leite no Quebec, rico em votos, e eles se dirigiram ao Parlamento, para desafiar Eugene Whelan, o ministro que supervisionava a legislação. Os fazendeiros que protestavam descarregaram suas frustrações em Whelan, humilhando-o publicamente. Antes que Whelan conseguisse falar sobre as emendas à controversa legislação, os fazendeiros jogaram leite em sua cabeça e o atingiram com um jarro. Isso enviou uma mensagem clara ao governo federal canadense, que permanece até hoje: as demandas dos produtores de leite não são uma questão trivial.

Whelan
Foto: Eugene Whelan, Ministro da Agricultura, sendo atacado pelos produtores de leite em 1976

A Comissão Canadense de Laticínios, formada pelo governo de Pierre Trudeau há 50 anos, trabalhou em favor dos produtores de leite em todo o Canadá. No entanto, há uma grande diferença na composição dos membros do conselho desde sua concepção, que provoca revolta hoje. Atualmente, a comissão é administrada por produtores de leite e, para tomar suas decisões, conta com informações fornecidas por produtores de leite.

O professor da Universidade de Guelph, Dr. Simon Somogyi, expressou ceticismo ao argumentar que a Comissão Canadense de Laticínios, sendo uma comissão do governo, deveria trabalhar em favor de todos os cidadãos e defender seus interesses. Ele observa que o controle do conselho pelos produtores de leite cria um ambiente sem transparência para o restante do povo canadense. Isto se torna preocupante quando essa mesma comissão é incumbida de reajustes de preços, que aumentam os lucros para os produtores e os custos para os consumidores. Apesar das evidências de fixação de preços, o lobby dos laticínios insiste que está engajado em um processo totalmente justo e transparente.

A Única Alternativa

Décadas se passaram, 16 eleições federais foram convocadas e 8 primeiros-ministros diferentes ocuparam cargos desde a criação da Comissão Canadense de Laticínios. Cada uma dessas administrações endossou o gerenciamento de suprimentos, independentemente de sua filiação partidária. O raciocínio deles, que ainda hoje tem mérito neste debate, é que a única outra alternativa lógica seria o apoio financeiro direto aos produtores, na forma de subsídios. Mas, mesmo acadêmicos como Bruce Muirhead, da Universidade de Waterloo (Ontário), estão do lado dos políticos ao dizer sem rodeios que isso não é viável.

Ele reuniu dados provando que os subsídios seriam mais caros para o contribuinte canadense. Projeções de um think tank político de Waterloo avaliaram esses subsídios na faixa de 38 a 42 milhões de dólares anualmente. Muirhead, em conjunto com o think tank, concluiu em seu trabalho de pesquisa (Crying Over Spilled Milk) que esses subsídios prejudicariam seriamente o equilíbrio do orçamento federal. Como resultado, a gestão da oferta sofreu críticas de alguns estudiosos, mas foi elogiada por tornar a produção sustentável sem que os contribuintes paguem a conta.

Ordenhando o sistema político

A gestão de suprimentos, no entanto, não é uma solução equitativa. Os bolsos profundos do lobby dos laticínios o enraizaram na estrutura da economia e da política do Canadá. A presença do lobby na capital do país é forte, talvez mais forte do que qualquer outro no país. Como tal, não é surpresa que eles tenham encontrado uma facilidade significativa em se aproximar da elite mais influente e política de Ottawa.

O lobby se infiltrou na ideologia dos 4 principais partidos políticos do Canadá, consolidando a gestão de suprimentos e a Comissão Canadense de Laticínios em todas as suas plataformas eleitorais, apesar de visões contrastantes. Fora da campanha, os partidos continuam apoiando fervorosamente quase todo o lobby. Raramente há uma semana em que um membro do Parlamento não se apresente perante a legislatura para elogiar a gestão de suprimentos.

Mesmo o partido mais esquerdista do Canadá, o Novo Partido Democrata, que se autodenomina “Pessoas acima do Lucro”, teve seu líder Jagmeet Singh prometendo “proteger a gestão de suprimentos e enfrentar tarifas injustas”, durante a última campanha eleitoral. Ao mesmo tempo, uma revista acadêmica fez manchetes declarando que o gerenciamento de suprimentos custa desnecessariamente à família canadense média, anualmente, um extra de US$ 347,00.

A pressão do lobby dos laticínios é forte em torno dos políticos canadenses. Ao contrário dos lobbies do petróleo e do tabaco – compartilhar um copo de leite com um lobista de laticínios não levanta as sobrancelhas do público. Pode ser visto como respeitável, sem corrupção, que os políticos defendam os interesses dos produtores. No entanto, políticos caindo nas mãos do lobby dos laticínios é perigoso para o canadense médio.

A Comissão Canadense de Laticínios elevou os preços dos laticínios duas vezes este ano, pela primeira vez em sua história, totalizando impressionantes 9,9%. Eles citaram a inflação, mas a taxa de inflação era de apenas 7,7% quando o aumento foi anunciado. Nenhum membro do Parlamento se levantou em nome dos canadenses para questionar essa manipulação de preços ou o poder obsceno do lobby dos laticínios. Tudo se resume a uma pergunta agora para os políticos canadenses: quantos litros de leite valem sua moral e dignidade?

O documentário de curta metragem foi contemplado pelo edital da Lei de Incentivo Paulo Gustavo, conta com o apoio da Prefeitura Municipal e tem como objetivo apresentar a relevância cultural, social e econômica da produção de laticínios em Carambeí, município cuja história se entrelaça com a imigração europeia e com a própria história do leite no Sul do Brasil.

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