Além das queimadas, que consumiram mais de 1,5 milhão de hectares neste ano, a saída do boi desse bioma preocupa produtores e lideranças da região
Por Ariosto Mesquita, de Campo Grande (MS)
Uma seca considerada sem precedentes nos últimos 40 anos e 6.629 focos de incêndios, entre 1º de janeiro e 14 de agosto, castigaram impiedosamente a pecuária pantaneira em 2020. Além das perdas provocadas pelo fogo, especialistas preveem queda nos índices zootécnicos. O governo do Mato Grosso do Sul – onde fica 66% do bioma – já projeta menor safra de bezerros em 2020/2021.
“A seca deste ano, deixou o nível dos rios muito abaixo da média, além de comprometer as fontes hídricas das fazendas. Isso ocorreu tanto na planície quanto nas partes mais altas, para onde os animais são transferidos, quando necessário, deixando o produtor pantaneiro em situação complicada”, alerta Rogério Beretta, superintendente de ciência, tecnologia, produção e agricultura familiar da Secretaria de Produção (Semagro). Segundo ele, a Secretaria vem recebendo relatos de produtores que estão com dificuldade de fornecer água aos animais, o que afeta seu desempenho.
Eriklis Nogueira, pesquisador da Embrapa Pantanal (atualmente cedido para a unidade Gado de Corte, em Campo Grande, MS), também prevê impacto negativo na taxa de prenhez: “Já agora, no período de parição, as vacas devem apresentar baixa qualidade de colostro e reduzida produção de leite. Além disso, quando voltarem à estação reprodutiva, essas fêmeas estarão com escore corporal muito baixo. O quadro certamente irá interferir na taxa de concepção, com menos bezerros no bioma, em 2021. E durante a desmama, provavelmente teremos animais com peso e qualidade baixos”.
Com relação à área queimada, Eriklis Nogueira espera que boa parte das pastagens se recomponha ainda neste ano. “Excetuando o prejuízo com estruturas destruídas, como cercas e pontes, o problema do fogo para as pastagens foi um pouquinho amenizado com as chuvas que caíram na região de Corumbá na segunda quinzena de agosto. Como no Pantanal a vegetação de campo rebrota muito rápido, pode ser que os animais encontrem pastos com boa proteína mais adiante. Porém, é bom lembrar que as chuvas, historicamente, apenas se regularizam a partir do final de outubro”, observa.
Boi é bombeiro do Pantanal
O Pantanal é uma planície com altitude média de 80 a 150 metros em relação ao nível do mar, com rebanho de bovinos estimado em 3,85 milhões de cabeças. Ciclos de seca e de cheias são comuns e inerentes à região. No entanto, nos últimos 10 meses houve um descompasso no fluxo normal de chuvas.
Em março deste ano, a pesquisadora da Embrapa Pantanal Balbina Soriano já alertava para as condições de precipitação no município de Corumbá, que com os seus 64.722 km² de área, ocupa 34,46% de todo o bioma (com área total de 187.818 km²). Segundo ela, o período de novembro a março é, historicamente, aquele que concentra o maior volume de chuvas, com média de 810 mm, mas, entre novembro de 2019 e 12 de março de 2020, choveu apenas 350 mm, ou seja, 43% abaixo da média.
Este déficit não foi compensado nos meses seguintes, tradicionalmente mais secos. De acordo com o Centro de Monitoramento do Tempo e do Clima de Mato Grosso do Sul (Cemtec), entre abril e julho de 2020 choveu 154,8 mm no município, ainda ligeiramente abaixo da média histórica para o período, que é de 162 mm. Com reduzido estoque de água no solo, a vegetação pantaneira disponibilizou grande volume de matéria seca, boa parte tradicionalmente consumida pelos bovinos, presentes no Pantanal desde o período colonial e que só em Corumbá somam 1,980 milhão de cabeças (dados da Secretaria de Desenvolvimento Econômico e Sustentável do município). Certamente por isso o pantaneiro considere o boi como “o bombeiro do Pantanal”.
Neste ano, entretanto, diversos relatos apontaram para uma sobra excessiva de material seco em pastagens, e os incêndios se multiplicaram. De janeiro a 14 de agosto de 2020, a força-tarefa de combate ao fogo no MS e no MT, baseada no 6º Distrito Naval de Ladário, MS, contabilizou 6.629 focos de fogo no bioma e uma área queimada de 1,550 milhão de ha (910.000 no MS e 640.000 no MT). O período mais crítico foi de 19 de junho a 21 agosto (63 dias).
De acordo com uma pesquisa atribuída ao Laboratório de Aplicação de Satélites Ambientais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, apresentada pelo tenente-coronel Waldemir Moreira, do Corpo de Bombeiros do MS, um dos líderes da força-tarefa, nesse período, o fogo consumiu 1,291 milhão de ha no Pantanal, 704.000 ha no MS e 583.000 ha no MT, representando 7,7% e 12% da área do bioma, respectivamente, de cada Estado.
Pastejo é barreira ao fogo
“Na região de Corumbá, o fogo queimou áreas de fazendas abandonadas, fruto de partilhas mal resolvidas. Onde tem boi, tem ‘bombeiro’ podando o capim alto e seco, que nessa época é combustível para incêndios”, observa o Coronel Ângelo Rabelo, presidente do Instituto Homem Pantaneiro (IHP), que atua na preservação do bioma.
Sandra Santos, pesquisadora da Embrapa Pantanal, de Corumbá, acrescenta que o risco de grandes incêndios neste ano se concentrou principalmente em regiões com baixa densidade de gado ou com estrutura de vegetação pouco usada para pastejo (plantas mais lenhosas e fibrosas). Segundo ela, onde há pastejo mais intenso, há barreira ao fogo: “Isso foi comprovado na sub-região da Nhecolândia, onde há grande volume de cabeças de gado e que, até agosto, foi menos afetada pelo incêndio. Isso mostra a importância do manejo sustentável da pecuária para a conservação do Pantanal”.
Apesar das autoridades não terem detalhado os prejuízos, é certo que os incêndios no Pantanal também consumiram pastagens produtivas. “O fogo avançou, atingindo principalmente áreas com Carandá, uma palmeira cuja folha seca, quando caída, queima facilmente e pode ser levada pelo vento, tornando algumas situações incontroláveis”, revela o professor da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), Arnildo Pott, especialista no bioma e ex-pesquisador da Embrapa (de 1980 a 2008).
Está ocorrendo um êxodo?
A existência de áreas de fazendas abandonadas leva a uma indagação: está havendo um êxodo do rebanho pantaneiro rumo a outras regiões? Enquanto essa questão ainda não é diagnosticada no MS, já é entendida como realidade no Mato Grosso. Ida Beatriz, presidente do Sindicato Rural de Cáceres, MT, garante: “Boa parte do gado da planície está sendo deslocado em definitivo para a parte alta. Das 1,1 milhão de cabeças existentes no município, apenas 140.000 estão no Pantanal, onde o rebanho já chegou a 800.000 animais no passado”.
A dirigente credita esse êxodo à lenta tecnificação e à dificuldade operacional, em função de uma logística mais complexa no bioma. “O ciclo pantaneiro ainda é longo. Uma vaca para criar pode demorar quatro anos. Desmama precoce e IATF não são práticas comuns, apenas tendências. O manejo nas partes altas é mais fácil. Vacinar nas águas dentro da planície, por exemplo, é muito complicado”, conta.
Dados do Instituto Mato-Grossense de Economia Agropecuária (Imea) confirmam esse cenário. Em 2018, apenas 105.000 animais do rebanho de Cáceres, estimado em 1,096 milhão de cabeças, estava dentro do bioma. O mesmo instituto lembra que 84% da área do município (cujo total é superior a 2,4 milhões de ha) fazem parte do Pantanal. Francisco de Sales Manzi, diretor técnico da Associação dos Criadores do Mato Grosso (Acrimat) também enxerga o problema e revela preocupação:
“O êxodo propiciará o aumento considerável dos incêndios e ainda excluirá o homem do campo. Além disso, quem entende que a saída do homem e do gado ajudará na preservação do bioma tem uma visão muito superficial do assunto. A pecuária não precisa tanto do Pantanal, mas o Pantanal precisa da pecuária”.
Em 18 de agosto, a Acrimat e mais nove entidades ligadas a produtores no MT, encaminharam ao ministro do Meio Ambiente, Ricardo Sales, a “Carta do Pantanal Mato-Grossense”. O documento propõe políticas públicas para o bioma em três níveis: desenvolvimento, combate ao fogo e sustentabilidade. Dentre as solicitações, pede o estabelecimento de um programa de manejo de fogo, a extinção de processos de implantação de unidades de conservação e a criação de um centro de recebimento e triagem de animais silvestres em Poconé, MT.