No ano em que se assinalam três décadas da criação da Confraria do Queijo de São Jorge, a Evasões visitou a ilha açoriana para descobrir a exuberância da sua paisagem, a sua arte de bem receber e um produto com séculos de história.
Velas, 06/10/2018 - Roteiro das três ilhas - Faial / Pico / São Jorge. Fajã, na ilha de São Jorge. (Foto Adelino Meireles / Global Imagens)

Todos os dias a meio da manhã, Emanuel Fontes desce da sua quinta na Ribeira Seca, Calheta, até à COOPERATIVA AGRÍCOLA DE LACTICÍNIOS DOS LOURAIS, onde entrega o leite que acabou de ordenhar e que dará origem ao queijo tradicional da ilha açoriana de São Jorge. Emanuel é um dos 230 produtores e um dos 40 sócios desta cooperativa, uma de três na ilha que se dedica à produção de queijo.

Com alguma frequência, hoje não tanto como antes da pandemia, abre a porta da sua quinta – EXPLORAÇÃO LEITEIRA IRMÃOS FONTES – a visitantes para mostrar o seu trabalho. E é com gosto que trata da sua manada de vacas holstein, uma das raças mais utilizadas na ilha para a produção de leite. Com 35 anos, Emanuel começou o negócio por conta própria aos 18. “Cheguei a ordenhar 60 vacas, agora tenho 25”, conta. “Ganhei a confiança delas e todas respondem pelo seu nome próprio”. Cada uma, explica, tem o seu lugar na manada, “a que está no lugar mais alto da hierarquia é a primeira a ser ordenhada. Mas isso, são elas que decidem entre si”.

Com uma história que remonta aos primeiros colonizadores da Flandres, o queijo de S. Jorge destaca-se dos das outras ilhas. Emanuel considera que as especificidades se devem ao pasto natural da ilha, vegetação como trevo ou língua de ovelha, e ao facto de ser uma ilha de origem vulcânica. Além disso, os pastos encontram-se, em média, acima dos 500 metros e estão expostos à salinidade do mar. Todos os produtores de leite para queijo entregam-no nas cooperativas, um modelo que, para Emanuel é uma forma de desenvolvimento da ilha, “estamos nisto todos juntos”, defende.

O queijo de São Jorge está a pôr toda uma economia a funcionar. Desde os produtores de gado, a fábricas, lojas e turismo. O trabalho de certificação e promoção tem sido feito nas últimas décadas pela Confraria do Queijo de São Jorge, que celebrou 30 anos em novembro passado com direito a Jornadas sobre o tema. Para comemorar a data foi mesmo produzido um queijo São Jorge DOP com 30 meses de cura, uma raridade, visto que as maturações mais comuns vão dos três aos 24 meses.

Inspirados pelo movimento confrádico de Torrelavega, em Espanha, foi, então, há três décadas que um grupo de dirigentes das fábricas de São Jorge se encantou com a ideia de uma confraria. “Na altura, a intenção era a promoção do queijo. Mais tarde e por causa dos regulamentos comunitários, surgiu a necessidade de haver uma entidade certificadora e a confraria assumiu esse papel”, conta o atual presidente da confraria António Azevedo. Antes, entre 1986, ano da criação da região demarcada, e 1991, era a Uniqueijo, uma união de várias cooperativas da ilha, que certificava, mas por questões de imparcialidade decidiu-se retirar esse processo aos fabricantes e passá-lo para uma entidade autónoma.

Um queijo de várias influências

Terá sido há 500 anos que colonos da Flandres se instalaram na ilha, levando gado e técnicas de produção de queijo. Mas o São Jorge de hoje será muito diferente do que se produzia inicialmente, pois tem uma “mistura de processos”, diz António Azevedo. “Já depois dos holandeses, vieram técnicos alemães e ingleses que deram o seu contributo. Por exemplo, hoje fazemos a cheddarização como se faz no tradicional queijo inglês cheddar”, explica.

A confraria quer agora acentuar o relacionamento do queijo com outros produtos dos Açores, como os vinhos do Pico, ilha que juntamente com esta e Faial compõe o “trângulo” do Grupo Central do arquipélago, mas também com produtos do continente, tentando seduzir chefs de cozinha para trabalhar o queijo e não só.

A ilha e os seus produtos seduziram a chef Luísa Fernandes, conhecida no meio como chef Luisinha, que está agora à frente do RESTAURANTE SÃO JORGE, no centro da vila de Velas. A vida desta chef natural de Monte Real, Leiria, é cheia de aventuras, ambições e sonhos concretizados. Enfermeira até aos 50, profissão que conciliava com a de chef (tinha um restaurante em São Bento, Lisboa), rumou para os Estados Unidos sem saber falar inglês.

“Eu tinha o sonho de ir para Nova Iorque desde que vi, quando era pequena, o filme “New York New York”, com a Liza Minnelli”, lembra. Luisinha, que na época vivia na Figueira da Foz, ficou fascinada com o tamanho dos prédios, a quantidade de automóveis, a imensidão de gente na rua. Quando os filhos já estavam criados, concretizou o sonho. Fechou o restaurante de Lisboa e foi à aventura sem conhecer lá ninguém, só com o contacto de uma senhora portuguesa que alugava quartos e de três restaurantes portugueses.

Conseguiu emprego num deles logo nos primeiros dias. Mais tarde, acabou por ser chef do Park Blue, restaurante perto do Central Park onde, com uma boa garrafeira e petiscos de inspiração portuguesa, conquistou os nova-iorquinos pelo estômago, incluindo o de muitos chefs de cozinha que trabalhavam por ali. Depois, inscreveu-se no famoso concurso televisivo da Food Network Chopped, em 2009, do qual saiu vencedora.

“Não é fácil viver muito tempo em Manhattan. É muito caro, mas lá tinha sensação de liberdade. Ali, ninguém se mete na vida de ninguém”, conta. Agora nos Açores, está à frente do São Jorge desde 2020. “Sempre tive a ideia de usar produtos locais, estivesse onde estivesse”, diz. “Uso os temperos que se utilizam cá, como a massa de pimenta, mas sem exagerar. Exploro o peixe, que gosto de servir grelhado. Faço espetadas de lulas, de carne de vaca com a liguiça daqui, de frango enrolado em bacon, explorando a influência americana dos muitos descendentes de emigrantes”, refere.

Ao almoço, arrisca em “temperos do continente” e receitas não muito habituais por ali, como rancho ou dobrada. “Quando quis fazer dobrada, disseram-me que era melhor não arriscar. Agora, até ligam para perguntar quando volto a fazer”. Em breve, o restaurante vai ficar maior, pois um novo espaço vai abrir mesmo ao lado, em fevereiro. Além disso, a chef vai ficar responsável por outro restaurante em frente ao mar, também ainda em obras.

Uma fajã muito fértil

Não são apenas os produtos locais que seduzem em São Jorge. A exuberância da ilha, com vegetação farta e muito verde, com altas arribas que contrastam com as fajãs, planícies junto ao mar usadas para a agricultura, não permite que esta se dê a conhecer em apenas dois ou três dias. Mas um dia basta para uma caminhada pela fajã do Ginjal (na Calheta), onde a meio do caminho se pode conhecer uma adega especial.

Na entrada, lê-se: “O sabor da vida depende de quem a tempera. Bem vindos à ADEGA DO GINJAL”. É num terraço sobre o mar, frente ao Pico e debaixo de uma frondosa videira, que se provam os petiscos da Dona Rosa, confecionados com produtos locais, não fosse esta fajã próspera em terra fértil, de onde se colhe batata-doce, inhame, malagueta, milho, tomate, uva americana para o vinho de cheiro e até café. Rosa adora cozinhar e conhecer pessoas. “Já fiz amizades com gente de todo o mundo”, conta.

A tradição de receber começou com a avó de Rosa, passou pela mãe e agora é assegurada por ela, que ali serve grupos por marcação. Tudo o que chega às mesas é o mais tradicional possível: queijo de São Jorge, massa sovada, bolo de sertã feito com o milho ali plantado, tortas de linguiça caseira, caldo de peixe, lapas, pudim de queijo, entre muitos outros petiscos.

É também no concelho da Calheta que vive Nelson Branco. Há sete anos, trocou a Ilha Terceira, de onde é natural, por São Jorge, e está agora a ganhar visibilidade por se dedicar, nos tempos livres, à arte da carpintaria. “O meu pai é carpinteiro e ensinou-me. Achei que também tinha jeito”, conta. Nelson trabalha na SATA, a companhia aérea dos Açores, e tem diversos hobbies, principalmente ligados ao mar, como surf e outros desportos aquáticos. “A madeira tinha ficado um pouco adormecida, mas durante a pandemia, comecei a ajudar um amigo que tem uma carpintaria”.

O interesse voltou e a ideia de desenhar tábuas para servir comida surgiu recentemente, antes do verão passado. A minha namorada prepara jantares vegans em eventos de Yoga e tinha sempre dificuldade em encontrar tábuas onde servir. Decidi fazer”.

Nasceu assim o projeto WILD WOOD AZORES, que aos poucos começou a crescer no Instagram e agora tem já um atelier que Nelson abre depois do trabalho para produzir e receber pessoas. Os formatos das tábuas são inspirados no imaginário açoriano, principalmente no mar, na forma de cachalote, onde o rabo é a pega, ou rabos de baleia. O logotipo do projeto saiu à primeira: um triângulo, a representar as três ilhas – Faial, São Jorge e Pico – e uma onda. A insularidade desenhada por quem a vive.

 

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