Opções de mercado vão além do setor alimentício.
Ismael Toigo foi o responsável pela abertura do primeiro mercado vegano do RS, localizado em Caxias Marcelo Casagrande / Agencia RBS

Caxias do Sul foi a primeira cidade do Estado a ter uma loja física de produtos exclusivamente dedicados ao público vegano. Isso foi há cinco anos, quando o empreendedor Ismael Toigo percebeu uma demanda reprimida na região vinda de um público do qual ele mesmo fazia – e faz – parte. Os veganos são pessoas que não consomem nenhum tipo de alimento de origem animal (como leite, ovos e mel, por exemplo), uma tendência que tem ganhado cada vez mais força no mercado, ao lado do vegetarianismo (consumidores que não ingerem nenhum tipo de carne) e do flexitarianismo (aqueles que buscam tirar a carne do cardápio, mas eventualmente ainda a consomem). Além disso, esse público também é mais exigente quanto à procedência dos alimentos, evitando marcas que testam seus produtos em animais ou não são ambientalmente responsáveis.

Aos 40 anos, Ismael comemora 12 deles dedicados ao veganismo. Quando decidiu abrir a loja Tchê Vegano em Caxias, pensou em oferecer mais opções a um público que, historicamente, sempre foi excluído da maior parte dos estabelecimentos comerciais. Hoje, comemora o sucesso do empreendimento que, no início deste ano, mudou-se para um endereço pelo menos quatro vezes maior do que o anterior justamente para responder a um público crescente.

– De uns dois ou três anos para cá, cresceu muito. Hoje, 14% da população brasileira se considera vegetariana ou vegana. Somos 30 milhões. Tem bastante gente parando ou querendo parar com a carne. Seja pela causa animal, seja para ser mais saudável, seja pela consciência ambiental – avalia Toigo.

A Tchê Vegano, que começou vendendo apenas comida, hoje reflete o crescimento deste mercado na diversidade de seus produtos. Estão disponíveis por lá linhas de cosméticos, de higiene pessoal, de limpeza para a casa, de ração e petiscos para pets, tudo exclusivamente vegano. A ideia é que o consumidor possa fazer um rancho garantindo itens livres de qualquer tipo de exploração animal. Ismael conta que o campeão de vendas é um queijo ralado à base de castanhas, ao lado das carnes vegetais – com texturas que imitam linguiças, salsichas, gado e frango, por exemplo.

O faturamento da Tchê Vegano aumenta em média 15% ano a ano. De acordo com Ismael, neste 2021 pandêmico a estimativa é de que haja um aumento de 30 a 35% com relação a 2020, crescimento ligado principalmente à expansão da loja para um endereço maior e com estacionamento (na Moreira César, 2.231). A popularidade da loja também vai garantir uma novidade prevista para o primeiro semestre do ano que vem: a abertura de um café com opções de lanches doces e salgados, além de pratos para o almoço.

– Quero muito oferecer as sopas de agnolini vegano no inverno – planeja Toigo, citando um dos clássicos da culinária local.

Bazar Vegano

Outra pessoa capaz de dimensionar o crescimento do público vegetariano e vegano em Caxias é Bruna Viapiana Felippi, 30. Vegana há uma década, ela organizou na cidade pelo menos quatro edições de uma feira chamada Bazar Vegano. A primeira foi realizada em 2016, já a última, e maior, lotou o espaço da Praça das Feiras em 2019, reunindo mais de 80 expositores majoritariamente locais, de setores como alimentação, higiene e cosméticos.

– Notei que, a cada ano que passava, foi crescendo mais. Neste período, recebi muitos relatos de pessoas que se tornaram vegetarianas, algumas foram direto para o veganismo, e muitas que diminuíram o consumo de carne se abrindo para novas possibilidades dentro da alimentação. O Bazar Vegano contribui trazendo informações e opções – avalia.

Além das bancas com produtos, a feira oferecia aos visitantes o contato com o universo do veganismo e vegetarianismo por meio de palestras e oficinas. Para Bruna, esse foi um dos principais diferenciais do bazar.

– O principal objetivo sempre foi despertar consciência nas pessoas. Oferecemos diversas palestras com nutricionistas falando sobre a questão alimentar, sobre como fazer essa transição. Além de conversas sobre ética, bem-estar animal, sobre os impactos ambientais que uma alimentação de origem animal traz – pontua Bruna, que planeja o retorno do bazar para o ano que vem.

Guilherme Dedecek / Divulgação
Diego e Everson recém abriram a Vegan Boys PizzaGuilherme Dedecek / Divulgação

Preenchendo lacunas culinárias

De acordo com um levantamento do núcleo caxiense da Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB), a cidade possui pelo menos 26 restaurantes com opções veganas no cardápio e cerca de 25 estabelecimentos fornecedores de insumos veganos (confeitarias, telentregas de comida congelada, entre outros). A Receita Federal não possui uma listagem da Classificação Nacional de Atividades Econômicas (Cnae) específica para estabelecimentos que se dizem veganos ou vegetarianos, mas basta dar uma olhada na aba de comida vegetariana dos aplicativos de entrega para constatar que o número de opções tem crescido.

Outra régua está disponível no perfil de Instagram @veganizacxs, que possui mais de 500 postagens desde abril de 2020, sempre divulgando iniciativas e empreendedores locais dedicados à culinária sem exploração animal. Muitos desses negócios atendem somente com pedidos pelo WhatsApp ou pelas redes sociais mesmo, oferecendo produtos que vão do bufê às tortas, dos pães ao sushi, das marmitas aos salgadinhos de festa, entre muitas outras alternativas. Além dos que não comem carne, o público intolerante à lactose também é um dos alvos desses empreendimentos.

Entre as pessoas que decidem empreender no ramo, uma motivação costuma ser comum: a vontade de oferecer ao público alimentos que elas mesmas sentiam falta no mercado. Foi o que aconteceu com o casal Diego Back, 27 anos, e Everson Almeida, 26. Os dois seguem uma dieta basicamente vegana e viviam em busca de uma pizza saborosa sem nenhum ingrediente de origem animal em sua composição. Sentindo dificuldade para encontrar, mesmo numa cidade tão repleta de pizzarias, acabaram se desafiando a criar sua própria receita. Assim nasceu a Vegan Boys Pizza, que começou a receber pedidos há um mês.

– A gente começou a fazer para amigos próximos e foi assim que vimos a reação deles muito eufórica. Ficamos animados e resolvemos começar a vender. Nossa ideia era ter uma renda extra e preencher essa carência no mercado local. Estamos surpresos com o resultado até agora – comenta Back, que, assim como o namorado, ainda mantém um trabalho paralelo na área de publicidade.

Os dois preparam as pizzas em casa, contando com diferenciais como a produção artesanal de queijo à base de castanhas. Atualmente, os pedidos são recebidos somente até as 16h da sexta e do sábado. O sucesso tem surpreendido e já se tornou comum para a dupla negar novos pedidos pela falta de estrutura para aumentar a produção. Algo que eles sonham em investir no futuro.

Na Vegan Boys, até mesmo o entregador das pizzas é vegano. Para Almeida, esse clima de cumplicidade e parceria também é sentido com relação ao mercado como um todo:

– É uma demanda relativamente recente na cidade e que tem crescido bastante. Então, cada vez que surgem mais negócios voltados a esse mercado, as pessoas abraçam porque se sentem amparadas de alguma forma.

Afinal, toda pessoa que não come carne já se sentiu frustrada ao solicitar uma opção no cardápio de algum estabelecimento e receber um prato “desfalcado” com a retirada dos ingredientes, e não especialmente adaptado ou pensado para esse público.

– Quem é vegano merece comer as melhores comidas do mundo, as comidas mais gostosas, mais saborosas, porque essas pessoas estão preocupadas em ter uma alimentação consciente com o meio ambiente, com a causa animal. É uma coisa tão importante – opina Back.

Porthus Junior / Agencia RBS
Lechuga, dos irmãos Rafael e Aline, se tornou referência ao público vegano da regiãoPorthus Junior / Agencia RBS

Atraindo turistas

Alguns estabelecimentos de Caxias já se tornaram tradicionais para quem é vegano. Um exemplo é o Lechuga, que abriu as portas em outubro de 2017, investindo em uma das maiores estrelas da culinária local: o xis. Lá, os hambúrgueres levam ingredientes como feijão, ervilha, cogumelo, grão de bico e moranga.

O público abraçou a ideia e, a exemplo do mercado Tchê Vegano, o restaurante precisou ampliar seu espaço para atender a demanda. O endereço atual (na Rua Pinheiro Machado, 600) é três vezes maior do que o primeiro e permitiu também a ampliação do cardápio. Hoje, o Lechuga é o único pub vegano da Serra, oferecendo também opções de pizzas, petiscos, sobremesas e drinks.

O empreendimento é comandado pelos irmãos Aline, 32 anos, e Rafael Sotoriva, 28. Ambos são vegetarianos, assim como a maior parte do público que frequenta o Lechuga.

– Sessenta ou 70% do nosso público é vegetariano, uns 20% é vegano e o restante é curioso, ou que não é muito adepto da carne. Também temos uma grande procura de pessoas com alguma intolerância, como à lactose – diz Rafael.

O faturamento do pub também tem sido crescente – com um aumento de cerca de 20% comparando o somatório de janeiro a agosto de 2020 com o mesmo período deste ano.

– O Lechuga só não cresce mais porque ainda temos o empecilho do preconceito. Só por ser culinária vegana, existem pessoas que já remetem a uma comida que não é boa ou que é cara, mas o preço médio do nosso xis é o mesmo praticado por outros estabelecimentos não veganos da cidade, cerca de R$ 25 – pondera Rafael.

Driblando a parcela de público que ainda torce o nariz para este mercado, o Lechuga aposta em diferenciais que acabaram por tornar o lugar uma referência na região, atraindo inclusive um bom número de clientes das cidades vizinhas.

O sucesso chamou atenção da Câmara de Indústria, Comércio e Serviços de Caxias do Sul, (CIC), que convidou o estabelecimento para integrar o roteiro Caxias Rota Sabor & Aventura, que conta com a participação de 18 empresas unidas em torno do fomento ao turismo na região.

Marcelo Casagrande / Agencia RBS
Ares de Mato é uma marca caxiense de cosméticos veganos e naturaisMarcelo Casagrande / Agencia RBS

O mercado se expande

Quando se fala em mercado vegetariano/vegano, geralmente costuma-se lembrar de restaurantes ou serviços dedicados à alimentação. Mas a verdade é que esse nicho tem movimentado diversos outros setores. O programa de certificação vegana da Sociedade Vegetariana Brasileira, por exemplo, já contemplou quase três mil produtos de cerca de 160 marcas diferentes em oito anos de existência. Nessa lista, a maioria é do setor alimentício, mas há também cosméticos, calçados, suplementos alimentares, além de produtos de higiene pessoal, limpeza e lavanderia. Outro indicativo da popularidade desse mercado é que, de janeiro de 2016 a janeiro deste ano, o volume de buscas pelo termo “vegano” no Google aumentou mais de 300% só no Brasil.

Em Caxias, a farmacêutica Gabriela Gislaine Secco, 34 anos, resolveu investir na paixão pessoal pelas plantas medicinais e cosméticos mirando o mercado em expansão dos produtos naturais, sustentáveis e veganos. Foi assim que, em 2017, ela criou a marca Ares de Mato, hoje comandada ao lado do companheiro, Gelso de Lima da Silva, 32. A lista de criações autorais oferecidas tem sabonetes corporais, xampus e condicionadores em barra, acidificante capilar, creme para o rosto, desodorante natural em creme, entre outros produtos.

Marcelo Casagrande / Agencia RBS
O casal Gabriela e Gelso comanda a Ares de Mato com foco na sustentabilidadeMarcelo Casagrande / Agencia RBS

A empresa, que começou de maneira artesanal e caseira, hoje conta com a parceria de uma indústria de Flores da Cunha para a fabricação dos produtos, apresentando um faturamento mensal na faixa dos R$ 40 mil – proveniente em parte das vendas online e em parte da vendas em lojas especializadas do ramo. Um dos principais divisores de água no sucesso da Ares de Mato foi a participação na Naturaltech, a maior feira de produtos naturais da América Latina, em 2019.

Nesses quatro anos de empresa, algumas mudanças no consumidor foram sendo notadas pelo casal, como uma maior cobrança do público com relação à consciência ambiental. No caso da Ares de Mato, isso está presente desde a escolha dos fornecedores, passando pelas embalagens e o impacto gerado pelo transporte – uma das últimas novidades foi a adesão da marca caxiense ao Frete Neutro, programa que calcula a quantidade de gás carbônico utilizada no envio dos produtos e sugere a compensação.

– A gente vê que têm crescido muito as pessoas que entram em contato com a empresa e questionam o processo produtivo, fornecedores. As pessoas estão cada vez mais antenadas nessas questões, não tem como o mercado voltar atrás – destaca Gabriela que, apesar de não ser vegana, também tem buscado alternativas mais ecologicamente corretas na alimentação.

Nesta pegada, o casal é orgulhoso ao contar, por exemplo, sobre seu principal fornecedor de manteigas e óleos: uma empresa do Pará que faz um trabalho importante de conscientização comunitária e mantém a sustentabilidade em nível local. Investimentos como esse fazem a diferença, mas também aumentam o preço do produto final.

– Hoje, temos consciência de que nosso produto ainda é proibitivo para rendas mais baixas, por toda essa questão do custo envolvido e da responsabilidade ambiental que, por mais que seja benéfica, tem um investimento alto envolvido para que possa acontecer – aponta Gelso.

Arquivo pessoal / Divulgação
A nutricionista Gabriela Zago (com o cabelo loiro) tornou-se uma referência local, e atua ainda no núcleo caxiense da Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB)Arquivo pessoal / Divulgação

Outras possibilidades

É certo que a opção por uma alimentação vegana ou vegetariana impacta diretamente na escolha por restaurantes e lanchonetes. O chef Gabriel Lourenço atentou, no entanto, para a demanda das pessoas que desejam aprender a se virar na cozinha investindo em receitas sem carne ou ingredientes de origem animal. Ele é idealizador da Escola de Gastronomia Sal a Gosto que há 10 anos vem acompanhando as tendências de mercado no setor gastronômico e há pelo menos cinco oferece cursos dedicados à culinária vegana. Atualmente, esse é um dos módulos disponíveis no serviço de streaming por assinatura que a escola inaugurou no ano passado, em meio à pandemia.

– Essa demanda pelos cursos aumentou, sim, consideravelmente nos últimos anos, ao mesmo tempo que o conhecimento e a exigência com relação à comida também aumentaram. Hoje, as pessoas se interessam pela origem do que estão consumindo, em saber se tem pesticida, se a agricultura é familiar, se não tem trabalho abusivo envolvido – avalia o chef.

Já para a nutricionista Gabriela Zago, o desafio empreendedor foi ainda maior. Em 2015, quando concluiu sua formação, ela decidiu investir todas as fichas no público vegetariano/vegano, algo que muitos consideraram arriscado no momento. Hoje, ela comemora o acerto:

– Como a maioria das pessoas veganas, eu tinha o interesse em contribuir com o crescimento do veganismo e acabei apostando nisso. Deu muito certo. Desde o começo, sempre atendi vegetarianos, veganos e pessoas em transição para o vegetarianismo. Hoje, esse público representa aproximadamente 90% dos meus pacientes.

Atualmente, Caxias possui outros profissionais da área da nutrição também focados no público que não consome carne, ou que deseja investir numa alimentação mais saudável. Mas Gabriela tornou-se referência, também por buscar especialização em nutrição esportiva.

–  Hoje em dia, a maioria dos pacientes já sabe que é possível ser vegetariano e ter performance esportiva, ganhar músculo. Antigamente, poderiam escutar um “não tem como” com mais facilidade, hoje eles sabem que tem como, só querem saber de que forma fazer – compara ela.

O trabalho de Gabriela ficou tão conhecido que ela acabou assumindo a coordenação do núcleo caxiense da Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB). Na ativa há três anos, o grupo conta com cerca de 10 voluntários  para difundir o vegetarianismo/veganismo localmente. Um dos trabalhos mais importantes da SVB Caxias é o contato com restaurantes, identificando opções veganas em seus cardápios e incentivando que elas estejam  mais visíveis ao público.

– Oferecemos cadernetas de receitas, de como fazer a troca de alguns ingredientes. É um trabalho que ajuda na expansão do veganismo. Comparado com cinco anos atrás, é mais fácil de achar opções hoje, porém, ainda deparamos com estabelecimentos que não têm nada para a gente comer, e isso é um atraso muito grande – constata Gabriela.

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