O apetite da indústria por produtos ultraprocessados não mostra sinais de desaceleração. Entre novembro de 2020 e novembro de 2024, dos 39 mil alimentos e bebidas embalados lançados no Brasil, 62% se enquadram na categoria de ultraprocessados, enquanto apenas 18,4% são in natura ou minimamente processados.
Os dados integram o primeiro relatório do projeto “Monitoramento da rotulagem de alimentos no Brasil”, desenvolvido pelo Ministério da Saúde em parceria com a Anvisa, a Opas e o Nupens/USP — um esforço conjunto para avaliar o perfil nutricional dos produtos comercializados no país e orientar políticas públicas de alimentação adequada.
🧠 Ciência versus marketing
A análise, conduzida pela pesquisadora Ana Paula Bortoletto, da USP, utilizou a base global da empresa Mintel, que registra todos os lançamentos de produtos embalados. O levantamento considera novas versões, sabores e embalagens — um universo que revela mais sobre as estratégias de marketing das indústrias do que sobre inovação nutricional.
A classificação dos produtos seguiu o método NOVA, referência no Guia Alimentar para a População Brasileira, que organiza os alimentos conforme o grau de processamento industrial. O resultado: a “comida de verdade” ainda é minoria nas gôndolas.
🧍♀️ Ministério defende avanço regulatório
Para Kelly Alves, coordenadora-geral de Alimentação e Nutrição do Ministério da Saúde, investir em evidências científicas é essencial para aprimorar as políticas públicas. “A rotulagem nutricional é parte da política nacional de alimentação e nutrição e expressa o compromisso do Estado com o direito à alimentação adequada”, reforçou a gestora, ao lembrar os 25 anos da política pública e sua integração à agenda regulatória da Anvisa.
⚙️ Gordura trans: um caso de sucesso — mas ainda com vírgulas
Enquanto os ultraprocessados dominam o mercado, há boas notícias no campo das gorduras trans. Um estudo da Universidade Federal de Juiz de Fora, conduzido por Marcone Leal em parceria com a Anvisa, analisou 113 amostras de óleos vegetais refinados e 200 de alimentos processados. Resultado: nenhum traço de gordura trans foi detectado.
A conquista é celebrada pela Opas, que reconhece o Brasil como um dos países mais avançados nas Américas na eliminação desse tipo de gordura industrial. “Prevenir doenças é fortalecer o SUS e o bem-estar da população”, afirmou Luisete Bandeira, consultora da organização.
Na mesma linha, Patrícia Castilho, gerente-geral de Alimentos da Anvisa, destacou que o monitoramento contínuo é vital para manter a efetividade das medidas. “Avaliar os impactos da regulação garante que os objetivos de proteção à saúde pública estejam sendo alcançados e aponta ajustes necessários”, afirmou.
📉 Redução sim, mas não fim
Um segundo relatório, liderado pela pesquisadora Camila Borges (Nupens/USP), analisou mais de 60 mil novos alimentos e bebidas lançados entre 2018 e 2025. O levantamento indica redução na presença de gorduras trans, mas também mostra que ainda há produtos com esse ingrediente declarado nos rótulos.
Ou seja, o país avança, mas o caminho até uma regulação plena e cumprida por toda a indústria ainda é longo. O projeto prevê a divulgação de mais quatro relatórios até agosto de 2026, o que deverá oferecer um retrato mais completo do comportamento das empresas diante das novas regras.
🏷️ Rotulagem frontal: transparência ou confusão?
Desde outubro, todos os produtos que se enquadram na norma RDC nº 429/2020 devem exibir a rotulagem nutricional frontal — uma medida que busca facilitar a compreensão dos consumidores sobre teores de açúcar, gordura e sódio.
Na prática, a nova exigência é vista por especialistas como uma ferramenta poderosa, mas ainda desafiadora. Se por um lado ajuda o consumidor a identificar produtos menos saudáveis, por outro, exige um esforço educativo e fiscalizador que o Estado ainda não mostrou ter capacidade plena de executar.
🧭 O dilema: acesso ou saúde?
O crescimento dos ultraprocessados revela um paradoxo nacional. O Brasil celebra avanços na regulação sanitária e na eliminação de ingredientes nocivos, mas permite que a base alimentar da população seja cada vez mais dominada por produtos industrializados, coloridos e baratos.
Enquanto o consumidor é bombardeado por embalagens sedutoras e slogans de “nutrição balanceada”, os alimentos de verdade — frutas, legumes, leite fresco, queijos artesanais — seguem perdendo espaço nas prateleiras e nos hábitos.
A missão agora é clara: regulamentar não basta; é preciso transformar o sistema alimentar. E isso exigirá coragem política para enfrentar os interesses da indústria e reposicionar o Brasil no mapa da alimentação saudável.
*Escrito para o eDairyNews, com informações de Portal A|I






