“O leite continua sendo disputado quase aos tapas, nos poucos supermercados onde ainda está sendo vendido. Quem quer comprar leite precisa acordar bem cedo e enfrentar filas quilométricas, E só consegue três litros de cada vez”.
O trecho destacado acima aparece na capa da edição de A TARDE de 30 de julho de 1986 e informa a situação de escassez vivida em Salvador naquela época. Faltava leite e também carne nas prateleiras dos supermercados e açougues, na capital e interior, em um cenário de crise mundial, hiperinflação e medidas governamentais adotadas de emergência para estabilizar a economia.
No meio da confusão de mães e pais brigando nas filas em busca de garantir o leite das crianças, a história do desabastecimento na Bahia ainda se misturaria com outra crise mundial iniciada em abril daquele mesmo ano, quando um reator da usina nuclear de Chernobyl, na cidade de Pripyat, na Ucrânia, explodiu, espalhando uma nuvem radioativa por boa parte da Europa, naquele que até hoje é considerado o maior desastre do gênero na história.
A economista Isabel de Cassio Ribeiro, gerente adjunta na Unidade de Gestão Estratégica do Sebrae – Bahia e presidente do Corecon-BA, explica que em fevereiro de 1986, quando o Plano Cruzado foi instituído no Brasil, a ideia era conter a inflação descontrolada através de uma estratégia de congelamento de preços e de salários.
“Mas, o que se viu, devido à euforia dos consumidores e aos prejuízos da indústria e comércio, que se negavam a repor os produtos pelo preço tabelado, associado à estiagem e entressafra, foi uma crise de desabastecimento no mercado interno. Pensando em garantir o abastecimento, a Companhia Brasileira de Alimentos (Cobal), ligada ao governo, lançou editais para importar produtos de outros países, como carne e leite em pó. O que não se esperava, no entanto, era que o acidente de Chernobyl, que viria a ocorrer próximo ao início das negociações, teria um impacto tão grande na alimentação dos brasileiros”, acrescenta.
O noticiário da época corrobora as explicações da economista, com manchetes que traziam a escalada da crise e da falta de alimentos: “Os supermercados estão enfrentando sérios problemas em suas tentativas de importação de leite em pó. Segundo William Eid, presidente da Associação Paulista dos Supermercados, as cotações feitas por algumas empresas em países como a Irlanda e a Holanda revelaram que os preços internacionais são mais altos que os do mercado interno”, diz trecho de uma reportagem da edição de A TARDE de 29 de julho de 1986.
Em outra notícia, o jornal revelava que a falta de carne verde em Salvador estava se tornando crítica e que já faltava, além da carne de boi, também o frango, porco e até carneiro, que tiveram uma demanda aumentada justamente para substituir o bife bovino na alimentação dos baianos.
Enquanto a população esperava as negociações para importação de carne e leite de fornecedores dos Estados Unidos e da Comunidade Econômica Europeia (CEE), o embrião da futura União Europeia (UE), o pouco leite que chegava era vendido na área externa dos supermercados da cidade, por medida de segurança, diante das imensas filas e dos ânimos exaltados de alguns consumidores.
“Desde muito cedo as pessoas começam a chegar, em sua maioria mulheres, que têm filhos pequenos e fazem questão de alimentá-los com leite. A multidão cresce a cada dia e só não chega a haver tumulto porque soldados da PM permanecem nos locais de venda para organizar as filas”, diz outro trecho da cobertura de A TARDE, na mesma edição de 30 de Julho citada no início deste texto.
Leite radioativo
Além das muitas mortes e da condenação de Pripyat a tornar-se uma cidade fantasma – até hoje ninguém pode morar no local e a estimativa mais otimista de quando humanos poderão voltar a viver ali oscilam entre 180 e 200 anos – , o acidente em Chernobyl, no noite de 26 de abril de 1986, não ficou restrito à cidade ucraniana.
Em plena União Soviética, Moscou demorou para liberar informações sobre as dimensões do desastre e, enquanto isso, a nuvem radioativa liberada pela explosão do reator avançava pelo território europeu, afetando países como Bélgica, Holanda, Alemanha, Reino Unido, Irlanda e Polônia.
Antes que as informações sobre a gravidade do acidente se tornassem públicas, o governo brasileiro tinha lançado o edital para compra de 43 mil toneladas de leite em pó e 2,5 mil toneladas de manteiga, que é um derivado do leite. Com a publicação das primeiras reportagens sobre o desastre nuclear, o governo brasileiro chegou a recuar da tentativa de importar o leite e a carne da Europa, cancelando a licitação.
“Mesmo após cancelar a licitação devido a temores de radioatividade, o governo decidiu retomar as negociações em junho, buscando garantir que os alimentos importados eram seguros para o consumo por meio de atestados para a importação e da avaliação dos níveis de radioatividade pela Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) na chegada dos produtos”, complementa Isabel Ribeiro.
Com as latas de leite já sendo vendidas pelo país, uma denúncia publicada na imprensa nacional e repercutida na mídia regional, revelou que parte do carregamento comprado na Irlanda estava contaminado por radiação em níveis inseguros para a saúde humana. De 20 mil toneladas adquiridas de empresas irlandesas, em três mil delas, testes constataram haver césio -137 em doses elevadas e perigosas.
O leite, no entanto, foi despachado para os supermercados brasileiros por uma resolução da Comissão Nacional da Energia Nuclear (CNEN). Sem ter a informação do possível risco à saúde ou indiferentes ao fato e ao perigo, as pessoas compravam e consumiam o ‘leite radioativo’. Por aqui, os baianos lidavam com a possibilidade de contaminação apelando para o senso de humor e fazendo piadas com a situação.
“Tem toda uma geração de brasileiros que foram criados à base do ‘leite de Chernobyl’. Não sei se o leite irlândes veio para a Bahia, mas lembro que na minha casa, meus pais compravam um leite de lata amarela, era uma lata enorme, que vinha da Holanda, tinha uma vaca malhada desenhada na lata, e também tinha uma lata azul que, se não me engano, era belga. O grande barato para mim e meus dois irmãos era decifrar os nomes naquelas línguas que não tínhamos a menor ideia de quais eram”, recorda a professora Patrícia Nascimento, 55 anos. Moradora de Salvador, ela estava com 17 anos na época da crise do leite e lembra bem do período.
A economista Isabel Ribeiro também lembra das latas enormes do leite estrangeiro chegando em sua casa e dos comentários das pessoas sobre o ‘leite de Chernobyl’. Ela, que na época da crise morava em Xique-Xique, arremata que no interior do Estado o desabastecimento era ainda mais crítico. “No interior não chegava nada. Havia pessoas que faziam seu mercado em Feira de Santana e em Salvador, porque no interior esse desabastecimento era mais elevado”, diz.
‘Fiscais do Sarney’
A presidente do Corecon-BA lembra ainda das chamadas ‘Fiscais do Sarney’, grupos formados, principalmente, por donas de casa que fiscalizavam se os mercados estavam cumprindo o tabelamento de preços estipulado pelo Plano Cruzado. “A população defendeu o plano porque acreditava que o mesmo era benéfico, transformando-se em um exército civil de fiscais da nova política econômica. Foi a pressão popular que garantiu o sucesso inicial do plano. As mulheres chegaram a fechar vários estabelecimentos comerciais que desrespeitavam o congelamento de preços”, explica Isabel Ribeiro.
O otimismo com o plano começou a diminuir justamente quando os produtos com preços tabelados e congelados começaram a sumir dos supermercados. Mas essa, segundo a economista, não foi a primeira vez que o Estado brasileiro interviu nos preços do leite. Uma interferência já havia acontecido em 1945, quando os preços foram tabelados na então capital do país, o Rio de Janeiro.
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“Foram 45 anos de tabelamento, que se encerrou no início da década de 1990. Em todo esse período, os preços recebidos pelos produtores se mostravam desestimulantes para cobrir os gastos com a produção, o que levava a baixos investimentos. Apesar de, na década de 1970, ter ocorrido uma modernização da pecuária leiteira e haver boas condições para seu desenvolvimento”, acrescenta.
No início dos anos 1980, continua Isabel Ribeiro, outros produtos derivados do leite foram tabelados e, em 1986, com o Plano Cruzado, o tabelamento se manteve. O plano, ao menos nos primeiros seis meses de adoção, possibilitou melhoria da renda da população, com registro do crescimento do consumo e aumento das importações.
“A produção interna, desestimulada com o tabelamento, não atendia o mercado interno. O tabelamento não possibilitava a melhora da produção e levava ao crescimento das importações, em um caráter predatório, penalizando e desestimulando ainda mais o produtor nacional”, finaliza a economista.