O “Queijo do Governo” | Nas profundezas do estado do Missouri, antigas minas de calcário guardaram por décadas um dos capítulos mais inusitados da história do leite nos Estados Unidos.
Trata-se do “Government Cheese”, ou “Queijo do Governo” — uma montanha de mais de 600 milhões de quilos de queijo processado armazenada para conter uma crise no setor lácteo.
A estratégia, nascida de políticas públicas e subsídios agrícolas, transformou blocos de queijo em símbolo cultural, ajuda alimentar e também em sinônimo de desperdício estatal.
A raiz da crise: promessas e subsídios
A história começa oficialmente com o Food and Agriculture Act de 1977, sancionado pelo então presidente Jimmy Carter. Para apoiar os produtores de leite, o governo garantiu preços mínimos para o leite — mesmo que houvesse excesso de produção. Isso eliminou os riscos para os fazendeiros e incentivou uma produção desenfreada.
Sem políticas de controle de oferta, os laticínios passaram a transformar o leite fresco, perecível, em produtos mais duráveis, como manteiga e queijo processado. Mas o que parecia solução virou problema: o governo se viu comprando toneladas de leite excedente diariamente, gastando cerca de US$ 2 bilhões em poucos anos.
O pico do excesso e a crise logística
Em 1984, os estoques federais chegaram ao ápice: mais de 1,2 bilhão de libras de queijo — o equivalente a 544 milhões de quilos. Para armazenar tanto produto, os EUA recorreram a mais de 150 armazéns em 35 estados, incluindo minas subterrâneas no Missouri, que ofereciam condições naturais de refrigeração.
O custo de manter esse estoque chegou a US$ 1 milhão por dia. E com o produto começando a estragar, a pressão pública aumentou.
De crise a programa de assistência alimentar
A virada veio em 1981, quando o secretário de Agricultura John R. Block exibiu, em rede nacional, um bloco de queijo mofado. Foi o gatilho para a criação do Temporary Emergency Food Assistance Program (TEFAP), que passou a distribuir gratuitamente blocos de 2,3 kg do “Queijo do Governo” para famílias de baixa renda.
Apesar da ajuda que representou para milhões de pessoas durante a recessão dos anos 80, o “Government Cheese” também carregava estigmas sociais. Para muitos, receber o bloco significava ser identificado como pobre — um símbolo de exclusão social.
O legado que permanece até hoje
Quase quatro décadas depois, as cavernas de queijo já não estão tão cheias, mas a lógica de intervenção no mercado lácteo continua. O governo americano ainda compra excedentes para estabilizar preços, e o TEFAP segue distribuindo queijo para populações vulneráveis.
Curiosamente, o “Government Cheese” também sobreviveu como ícone cultural. Referenciado em músicas de Jay-Z e Kendrick Lamar e até transformado em série da Apple TV, ele deixou de ser só um alimento e virou uma metáfora: de superação, de memória coletiva e de uma política pública que foi longe demais.
Para refletir
O caso do “Queijo do Governo” é um alerta sobre os riscos de políticas públicas mal calibradas, mas também uma mostra de como o leite e seus derivados podem ser protagonistas de narrativas econômicas, sociais e culturais.
Em tempos de debates sobre segurança alimentar, desperdício e apoio à produção, a história norte-americana traz lições valiosas — inclusive para os países latino-americanos.
*Adaptado para eDairyNews, com informações de clickpetroleoegas.com