Embora hoje muitos me ouçam falar mais sobre mercados e competitividade do que sobre as virtudes do leite, são situações como esta, que me indignam até o fundo da alma, que me lembram por que escolhi o caminho que me trouxe até aqui.
O que me fez ser jornalista não foi uma vocação romântica nem o amor pelas palavras: foi a necessidade urgente de enfrentar a pós-verdade, de denunciar como se desprestigia sistematicamente o produtor rural e se demonizam os alimentos mais nobres e saudáveis que existem sobre a face da Terra.
E foi justamente a nova campanha da NotMilk que me levou de volta àquela indignação que um dia me fez levantar a voz. Porque não se trata apenas de um comercial.
É mais um capítulo desse enredo que tenta apagar, com o pior do marketing, aquilo que gerações inteiras construíram com trabalho, ciência e alimento de verdade.
Como jornalista, sempre procuro manter a equanimidade, informar com contexto e escutar todos os lados… até que uma empresa —por mais “disruptiva” que se diga— decide parodiar uma peça histórica como a dos bebês Parmalat, usando-a de forma vil para denegrir o leite de vaca.
Onde fica o respeito por uma indústria que alimentou (e continua alimentando) gerações inteiras? Onde está a ética ao se usar a nostalgia como arma comercial contra um alimento tão nobre?
NotMilk mostra os icônicos bichinhos bebês da Parmalat já adultos, visivelmente desconfortáveis, com a barriga inchada e expressões de sofrimento. O que aconteceu com eles? Beberam leite de vaca. E o que os alivia? A bebida vegetal da marca.
Tudo isso apresentado com uma estética “descolada”, “engraçada” e uma narrativa que, por trás da superfície, nos aponta —aos que continuamos escolhendo o lácteo verdadeiro— como se fôssemos anacrônicos, ingênuos ou doentes.
O golpe baixo por trás da piada
Não se trata apenas de “criatividade”. Trata-se de uma estratégia de ataque direto a um setor que há décadas trabalha para melhorar processos, oferecer opções para todos (inclusive para os intolerantes) e sustentar cadeias produtivas que geram emprego, alimento e desenvolvimento.
Dar visibilidade à própria marca para crescer? Ótimo. Mas promover-se às custas de ridicularizar o outro, gerar medo ou culpa no consumidor e distorcer a realidade não é progresso. É oportunismo e cara de pau disfarçados de inovação.
Não é concorrência: é uma batalha cultural
Por trás do sorriso sarcástico da campanha, existe uma narrativa que tenta redefinir o que é “bom” ou “ruim” comer. E faz isso sem base científica, sem responsabilidade na comunicação, mas com muito orçamento em storytelling emocional.
Há muitas pessoas com intolerância à lactose? Sim. Mas também é verdade que a indústria láctea já trabalha para atendê-las: oferece leite sem lactose, leite A2, iogurtes fermentados, enzimas digestivas, entre outras soluções.
O leite não é passado: é presente e futuro
O leite de vaca não é um erro evolutivo. É um alimento completo, regulado, confiável e fundamental na dieta de milhões de pessoas. Pode haver debate? Claro. Mas sem zombarias, sem manipular memórias coletivas, sem fazer marketing do desprezo.
Eu cresci vendo os bebês Parmalat. Até hoje me emociona aquela ternura. Eles representavam saúde, nutrição, amor. Que agora venham transformar essa imagem em algo grotesco, incômodo e descartável… é um insulto —à indústria e também ao consumidor.
O mundo precisa de alimentos melhores, sim —mas também de mensagens melhores. Nem tudo vale em nome do lucro. Existem limites que, uma vez cruzados, nos obrigam a reagir. Porque se nos calamos, contribuímos para o avanço de uma narrativa perigosa: a que diz o que você deve comer, conforme o interesse do maior investidor.
Hoje, mais do que nunca, os consumidores buscam —e merecem— informação clara e opções reais, que não os levem a escolher por medo ou por culpa.
Não se constrói um futuro alimentar denegrindo suas raízes sob a bandeira de uma falsa evolução.
Valéria Hamann
EDAIRYNEWS
📢 O que aconteceu depois: Conar suspende campanha da NotCo
A polêmica campanha da NotCo não demorou a gerar consequências concretas. O Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) recomendou a suspensão provisória da campanha após denúncias formais apresentadas por cinco entidades do setor lácteo, que classificaram o conteúdo como difamatório e sem embasamento científico.
O vídeo — que fazia paródia do icônico comercial da Parmalat — foi retirado do YouTube após a própria Parmalat acionar o Conar e uma série de manifestações públicas por parte de produtores, cooperativas e empresas do setor lácteo.
📌 Dados importantes sobre o impacto:
Mais de 1 milhão de produtores de leite no Brasil se sentiram atingidos pela campanha.
O país produz anualmente cerca de 35 bilhões de litros de leite, movimentando a economia em todas as regiões.
As entidades afirmam que a campanha representa um “desserviço” à sociedade, ao associar o leite a doenças gastrointestinais de forma generalizada e sem respaldo científico.
A Embrapa, o Ministério da Saúde e a Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhecem o leite como alimento essencial para uma dieta equilibrada e o desenvolvimento humano.
Em nota conjunta, entidades como Abraleite, Viva Lácteos, G-100, ABIQ e ABLV exigiram não apenas a retirada imediata do conteúdo, mas também medidas para conter a disseminação de desinformação sobre alimentos e reparar os danos à imagem do setor produtivo.