A fermentação de precisão segue cercada de expectativas no setor global de alimentos, mas a reação do consumidor continua sendo o maior fator de incerteza para o avanço dessa tecnologia.
Embora alguns a vejam como a “próxima fronteira” da inovação em ingredientes, produtos e modelos de produção, a aceitação pública permanece frágil — e, em alguns mercados, quase inexistente.
Nos Estados Unidos, onde surgiram as primeiras tentativas de lançar alimentos com proteínas produzidas por fermentação, o desempenho comercial não acompanhou a onda de entusiasmo inicial.
Segundo narrativas de mercado coletadas nos últimos anos, produtos como sorvetes e alternativas lácteas tiveram baixa adesão, motivada principalmente por dois fatores: preços altos e confusão do consumidor sobre o que exatamente está consumindo.
Essa combinação levou ao descontinuamento de várias marcas, evidenciando que, mesmo em países com apetite histórico pela inovação, o público ainda não está convencido.
Hoje, poucos itens desse tipo permanecem no varejo norte-americano. Um deles é o Strive Freemilk, um leite “sem vaca” com whey produzido por fermentação, disponível online e em algumas lojas de Nova York e Kansas City.
Em Israel, a ImaginDairy fornece whey de fermentação para uma linha própria do grupo Strauss — um movimento acompanhado com atenção pelo setor justamente porque pode gerar insights valiosos sobre a percepção dos consumidores.
Mas é no Reino Unido que a visão mais completa sobre o comportamento do público começa a surgir. Uma pesquisa conduzida pela consultoria científica Diffusion, baseada em uma amostra nacional de 2.005 consumidores, revelou um quadro de neutralidade dominante.
De acordo com a sondagem, 40% dos britânicos estão indecisos, enquanto apenas 36% apoiam a fermentação de precisão. Na definição apresentada aos entrevistados, a tecnologia aparecia como o uso de microrganismos geneticamente modificados — como leveduras ou bactérias — para produzir ingredientes como proteínas do leite, ovos ou óleo de palma em ambiente controlado.
O dado mais intrigante, porém, está na diferença por gênero e faixa etária. Enquanto 46% dos homens demonstraram apoio, somente 27% das mulheres se declararam confortáveis com a tecnologia.
Millenials e Gen Z aparecem como os mais favoráveis, ao passo que consumidores acima dos 55 anos mostram maior resistência. Mesmo assim, quando comparada ao consumo de carne cultivada, a fermentação de precisão desperta menos rejeição e parece carregar uma imagem menos “visceral”.
Para Ivana Farthing, líder de comunicação científica e diretora-geral da Diffusion no Reino Unido, a percepção pública está em plena formação. Ela descreve o cenário como uma disputa narrativa que ainda não foi vencida.
Nas palavras atribuídas à executiva, o público britânico não está polarizado sobre fermentação de precisão: “A rejeição é menor do que no caso da carne cultivada, mas a conscientização também é reduzida. Existe um grande contingente de pessoas que ainda não sabe o suficiente para apoiar ou se opor”.
Quando se analisa a rejeição à carne cultivada — usada como referência para compreender tendências de aceitação — a pesquisa mostra que 68% dos consumidores a consideram “artificial ou não natural”, enquanto quase metade manifesta preocupação com riscos à saúde.
Para os especialistas ouvidos pela consultora, essas objeções são majoritariamente instintivas e não baseadas em evidências. Ainda assim, elas funcionam como pista para o setor: conceitos percebidos como artificiais enfrentam um caminho mais difícil para conquistar a confiança do público.
No caso específico da fermentação de precisão, o desafio é conquistar o grupo descrito pela consultoria como os “persuadíveis”. São consumidores que não rejeitam a tecnologia, mas ainda precisam entender para que serve, como é feita e se realmente traz benefícios — seja ambientais, econômicos ou nutricionais. É justamente nesse espaço que se joga o futuro comercial dos novos ingredientes.
Especialistas ligados à pesquisa afirmam que o setor ainda tem a chance de moldar a narrativa antes que desinformação ou ruídos dominem o debate público. A recomendação geral aponta para uma combinação de educação científica acessível, transparência nas etapas de desenvolvimento e maior envolvimento de especialistas independentes.
Segundo a própria pesquisa, 41% dos consumidores confiam mais em cientistas do que em políticos ou representantes do setor privado quando o assunto é inovação alimentar. Além disso, um terço dos entrevistados declara que a validação de informações por especialistas externos aumenta significativamente sua confiança.
Embora governos e agências reguladoras — como a autoridade de segurança alimentar britânica — tenham papel central na construção de segurança, o setor privado é instado a assumir o protagonismo inicial. Associações, centros de pesquisa e empresas pioneiras são vistas como fundamentais para traduzir a ciência em linguagem simples, responder dúvidas e estabelecer padrões de transparência.
O consenso entre especialistas é claro: a fermentação de precisão só conseguirá ocupar espaço relevante no mercado se conquistar o consumidor antes de chegar em massa ao varejo. Até lá, a combinação de expectativa, dúvida e neutralidade continuará ditando o ritmo da inovação.
*Escrito para o eDairyNews, com informações de Dairy Reporter






