O leite não está no centro do embate político entre França e Mercosul, mas reaparece como uma das cadeias agrícolas que podem sentir os efeitos indiretos do novo bloqueio francês ao acordo comercial birregional. A informação foi confirmada por um porta-voz do governo após a reunião semanal do gabinete presidido por Emmanuel Macron, conforme relatado por agências internacionais. Segundo as declarações, a França considera o texto atual do acordo inaceitável e exige mudanças.
O ponto central da objeção francesa são as chamadas cláusulas espelho, instrumentos que exigem que produtos importados sigam padrões ambientais, sanitários e de bem-estar animal equivalentes aos aplicados dentro da União Europeia. Esses requisitos, que já vinham aparecendo em debates técnicos, agora emergem como condição explícita para Paris autorizar qualquer avanço no UE–Mercosul.
De acordo com fontes do governo francês citadas pela imprensa europeia, o país quer que a Comissão Europeia apresente “o quanto antes” mecanismos que assegurem competitividade justa para agricultores europeus. Embora o porta-voz tenha se referido às importações agrícolas de forma ampla, especialistas ouvidos pela própria mídia europeia apontam que cadeias sensíveis — como carnes, frutas, grãos e lácteos, especialmente leite em pó — tendem a ser diretamente afetadas por padrões mais rígidos.
O setor lácteo, portanto, não está na linha de frente das negociações, mas segue no grupo de commodities que dependem de previsibilidade regulatória para manter competitividade no mercado europeu. Para exportadores do Mercosul — Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai —, essas cláusulas podem representar custos adicionais, necessidade de certificações extras ou eventuais barreiras não tarifárias disfarçadas de exigências ambientais.
Negociadores sul-americanos frequentemente lembram que diferenças estruturais entre modelos produtivos tornam equivalências absolutas inviáveis. Clima, sistemas de pastagem, normas sanitárias e legislação ambiental variam significativamente entre os blocos. Produtores lácteos do Cone Sul, por exemplo, operam com custos distintos dos europeus, em parte porque dependem menos de modelos intensivos. Para eles, equiparar regras de maneira mecânica pode distorcer a competitividade em vez de equilibrá-la.
Do lado europeu, a narrativa é outra. Fontes próximas ao governo francês defendem que práticas agrícolas sustentáveis fazem parte do pacto social e ambiental da União Europeia e que qualquer abertura comercial precisa garantir que esses padrões não sejam minados. O leite, dentro da UE, é uma cadeia fortemente regulada, com controles rigorosos e políticas de apoio que buscam manter rendas e estabilidade produtiva em áreas rurais.
Esse contraste explica por que a cada novo ciclo de negociações o acordo UE–Mercosul parece estar simultaneamente perto e longe da assinatura. A proposta atual já passou por revisões e adendos ao longo dos últimos anos, mas a posição francesa continua sendo o principal obstáculo. Sem o aval de Paris, nenhum avanço real ocorre em Bruxelas, mesmo que outros Estados-membros — como Espanha e Alemanha — demonstrem interesse em concluir o processo.
Para as indústrias de leite do Mercosul, o impasse prolongado mantém o setor em estado de espera permanente. Empresas que poderiam planejar expansão, diversificação de destinos ou captações de longo prazo acabam adiando decisões por falta de clareza normativa. O mercado europeu, embora altamente competitivo, representa potencial de margens superiores e demanda estável.
Enquanto isso, especialistas em comércio internacional alertam que o cenário global está mais fragmentado, e acordos dessa escala se tornam progressivamente raros. A demora no UE–Mercosul reduz a atratividade do bloco sul-americano e limita sua capacidade de projetar competitividade global, incluindo produtos lácteos.
Com a França reafirmando seu “não” ao texto atual e exigindo novas salvaguardas antes de qualquer avanço, o setor de leite segue atento. Não é protagonista do embate, mas está entre os setores que podem ganhar — ou perder — dependendo de como Bruxelas e Paris calibrarão o próximo passo. Por agora, o sinal é de continuidade da incerteza.
*Escrito para o eDairyNews, com informações de The Dairy Site






