Ir comprar um litro de leite hoje pode significar se envolver em uma guerra cultural acirrada.
O recente anúncio da Arla Foods sobre os testes do suplemento alimentar Bovaer em fazendas do Reino Unido desencadeou uma série de teorias conspiratórias da extrema direita.
O que deveria ser uma inovação tecnológica para reduzir emissões de metano foi transformado em uma polêmica que envolve desinformações sobre mudanças climáticas e taxas de fertilidade.
Enquanto isso, nos EUA, o Secretário de Saúde Robert F. Kennedy Jr. faz campanha para legalizar o leite cru — não pasteurizado e potencialmente perigoso para o consumo humano.
Produtos como leite de aveia também são alvo de críticas nas redes sociais, levantando dúvidas sobre seus valores nutricionais. Mas como o leite se tornou tão polêmico?
A controvérsia sobre o Bovaer
O Bovaer é um suplemento que promete reduzir em até 30% as emissões de metano de vacas leiteiras, segundo a empresa holandesa DSM. O metano, emitido principalmente por meio de arrotos de vacas, é um dos gases de efeito estufa mais potentes, sendo muito mais eficaz que o dióxido de carbono em reter calor na atmosfera. Dessa forma, o Bovaer poderia ajudar a prolongar o consumo de lácteos em um planeta menos impactado pelas mudanças climáticas.
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Em novembro, a cooperativa Arla Foods anunciou que 30 de suas fazendas no Reino Unido testariam o suplemento. Contudo, em vez de celebração, a notícia desencadeou um alvoroço de desinformações, incluindo a ideia de que o suplemento poderia ser transferido para o leite e causar infertilidade nos consumidores. Algumas pessoas chegaram a publicar vídeos despejando leite ou descartando produtos como manteiga em protesto.
A Arla Foods respondeu rapidamente. “O Bovaer já foi amplamente utilizado com segurança na Europa. Em nenhum momento o suplemento impacta o leite, pois ele não é transferido do animal para o produto final”, declarou a empresa. Além disso, esclareceu que Bill Gates, frequentemente associado a teorias conspiratórias, não tem relação com o projeto.
Apesar das explicações, o pânico se espalhou. Esta semana, Lady Sheehan, presidente do comitê de meio ambiente e mudanças climáticas da Câmara dos Lordes, pediu aos ministros que enfrentassem a desinformação. “O governo tem evidências de que o produto é seguro e pode comunicar isso ao público”, afirmou.
Leite e a extrema direita
O Bovaer acabou se tornando o alvo perfeito para teorias conspiratórias, combinando elementos como mudanças climáticas, multinacionais manipulando alimentos e preocupações com a fertilidade masculina. Há também o simbolismo do leite em si, que nos últimos anos virou um ponto de apoio para a extrema direita.
“O leite, como alimento cotidiano, e sua conexão imaginária com maternidade e infância, torna-se um alvo útil para teorias conspiratórias e nacionalistas brancos”, explica a Dra. Catherine Tebaldi, antropóloga da Universidade de Luxemburgo.
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“Desde 2015, alguns nacionalistas brancos defendem que apenas pessoas brancas possuem genes para digerir o leite e promovem o consumo público da bebida como um ato simbólico.”
Essa associação entre leite e identidades culturais ganhou notoriedade em 2017, quando manifestantes nos EUA usaram o leite como símbolo de “masculinidade americana”, em contraposição ao veganismo. Críticas a substitutos, como o “leite de soja”, rotulam seus consumidores como “soy boys”, termo pejorativo que sugere fragilidade masculina.
A polêmica do leite cru
Outro ponto de debate é o consumo de leite cru, não pasteurizado. Nos EUA, figuras como RFK Jr. e influenciadores digitais promovem seu consumo, apesar dos riscos comprovados à saúde.
Cientistas afirmam que o leite cru pode conter bactérias perigosas, como as que causam tuberculose bovina e febre tifoide. Mesmo assim, seu consumo ganhou adeptos em meio a movimentos que rejeitam tecnologias e orientações da “elite científica”.
“Há um sentimento de desconfiança em relação aos especialistas, vistos como parte de uma elite desconectada da realidade das pessoas comuns”, explica Fabio Parasecoli, professor de estudos alimentares na Universidade de Nova York. Ele também observa como alimentos são usados como ferramentas ideológicas para dividir comunidades.
Gwyneth Paltrow, por exemplo, defendeu o consumo de leite cru como uma opção “mais natural”, embora estudos não confirmem esses benefícios para humanos. A popularidade do leite cru entre influenciadores também reflete o aumento de informações anti-ciência em espaços online.
Desinformação e radicalização
Dr. Tebaldi aponta que a pasteurização — um marco científico que salvou vidas desde o século XIX — é alvo de teorias conspiratórias com toques antissemitas. Na internet, discursos de “saúde individual” são frequentemente usados para radicalizar pessoas, conectando preocupações pessoais com ideologias eugenistas e extremistas.
“Em espaços online, preocupações sobre alimentação são frequentemente exploradas por influenciadores de direita para promover a ideia de que o problema não é apenas pessoal, mas um sintoma de uma sociedade moderna degenerada”, conclui Tebaldi.
Conclusão
No final das contas, talvez não seja o leite que devemos temer, mas as ideias anti-ciência e desinformadas que o envolvem. Afinal, o debate sobre o leite é mais um exemplo de como alimentos cotidianos podem se tornar ferramentas políticas em um mundo cada vez mais polarizado.
*Traduzido e adaptado para eDairyNews