Frente a uma demanda de mercado de alguns laticínios, impulsionada pelo novo olhar dos consumidores sob os produtos lácteos, um forte movimento de promoção do bem-estar animal na cadeia produtiva do leite surge no Brasil, desde meados do ano de 2015. E, junto com ele, a ampliação da adoção das boas práticas de manejo em fazendas leiteiras.
Empresas do segmento têm incluído em suas guias regulatórias de produção de leite, e com isso, a busca por maior qualidade na produção de leite passou a se tornar uma realidade na produção leiteira. De fato, essa demanda por alimentos oriundos de sistemas sustentáveis e eticamente corretos é decorrente também devido a uma maior preocupação dos consumidores às condições em que os animais são mantidos nas fazendas.
Segundo a professora da Fazu (Faculdades Associadas de Uberaba), Dra. Lívia Carolina Magalhães Silva, especialista na área de produção, comportamento e bem-estar de bovinos leiteiros, o passo inicial para se alcançar êxito na aceitação dos produtores de leite quanto a essa nova demanda foi mitigar ações de manejo que causassem forte sofrimento aos animais e que pudessem contribuir negativamente na imagem do produto. De forma prática, as ações de desenvolvimento de projetos de bem-estar de bovinos leiteiros no Brasil se iniciaram com a difusão de conceitos e técnicas de aplicações das boas práticas de manejo nas fazendas com ênfase na redução de perdas por falhas de manejo, tendo foco nos seguintes processos:
a) Minimizar a aplicação de ocitocina exógena durante a ordenha de vacas;
b) Padronizar manejos de colostragem e aleitamento dos bezerros;
c) Utilizar anestesia e analgesia antes de qualquer procedimento doloroso, como a mochação dos bezerros.
Dra. Lívia é pós-doutora na área de produção, comportamento e bem-estar de bovinos leiteiros. — Foto: Arquivo Pessoal
“Quando pensamos em facilidade de manejo, de imediato somos remetidos às dificuldades na realização de determinado processo dentro da fazenda e qual estratégia de manejo iremos adotar para solucionar tais problemas, que por sua vez podem afetar a produtividade da fazenda e o bem-estar dos animais. Se tratarmos de manejo de ordenha de vacas primíparas zebuínas ou oriundas de seus cruzamentos essa reflexão torna-se ainda mais importante. Para o caso de vacas primíparas, devemos saber que enquanto novilhas, o manejo com esta categoria merece atenção, pois muitas vezes elas são renegadas a manejos pontuais sendo muito deles considerados aversivos para o animal como vacinação e tratamentos de doenças”, afirma Lívia.
A professora ressalta que prestar mais atenção e melhorar o manejo destes animais implica em melhorias no bem-estar beneficiando seus índices produtivos, uma vez que estes são considerados um importante investimento financeiro nas fazendas. Quando a primeira ordenha da primípara torna-se estressante (relutância em entrar na sala de ordenha, presença de gritos e agressão física do manejador contra o animal) os estímulos para a descida do leite acabam sendo comprometidos dando lugar à atuação do hormônio adrenalina que possui ação antagônica a ocitocina, ou seja, a presença da adrenalina inibe a liberação de ocitocina e consequentemente a descida do leite.
“Como forma de solucionar este problema vários produtores têm lançado mão da aplicação de ocitocina exógena em vacas para estimular a descida do leite durante a ordenha. Esta prática se tornou rotineira em muitos rebanhos leiteiros, sem qualquer preocupação com os riscos inerentes a aplicação de medicamentos intravenosos”, completa Lívia.
No Brasil a prática ainda prevalece em muitos rebanhos leiteiros, apesar dos riscos de transmissão de doenças infectocontagiosas (p.ex. tripanossomose, leucose e brucelose) entre as vacas do rebanho, além de ocorrências de processos inflamatórios nas veias mamárias (flebites). O risco de transmissão de doença está geralmente associado ao uso de seringas e agulhas de forma compartilhada, que deveriam ser descartadas após cada aplicação. “Vale a pena ressaltar que ações como esta também tem impacto negativo em toda a cadeia produtiva do leite, uma vez que esta prática não é bem aceita pelos consumidores”, acrescenta.
Os projetos de bem-estar de bovinos leiteiros no Brasil se iniciaram com a difusão de conceitos e técnicas de aplicações das boas práticas de manejo nas fazendas. — Foto: Arquivo Pessoal
De acordo com a professora Lívia, foi com base no conhecimento gerado por experiências práticas a campo respaldadas em técnicas científicas comprovadas, que a adoção conjunta de boas práticas de manejo, tanto na preparação de novilhas Girolando para a primeira ordenha quanto na rotina da ordenha, facilitou a adaptação das vacas aos manejos da fazenda. A experiência da Fazenda Boa Fé/Ma Shou Tao (Grupo Araunah), localizada em Conquista (MG), tem sido um bom exemplo na prática em como preparar os animais para a primeira ordenha.
A partir de técnicas baseadas em maior interação positiva entre novilha e manejador puderam obter comportamentos desejáveis como maior docilidade dos animais, facilidade ao ensiná-las a entrar na ordenha e primíparas mais calmas e zelosas com suas crias, reduzindo até o último ano (2018) em 75% da aplicação de ocitocinas em vacas durante a ordenha, e agora em 2019 eliminou completamente este uso. “Práticas como estas são encorajadas devido à relação humano-animal afetar positivamente o bem-estar, a saúde e a produtividade de animais leiteiros”, destaca.
Quando tratamos de manejo de bezerros leiteiros a importância da interação positiva entre o tratador e o animal não é diferente, e os impactos de ações como falhas na colostragem e no fornecimento de leite aos bezerros, bem como a diminuição de sofrimento em processos de mochação também interferem negativamente no grau de bem-estar dos animais e consequentemente na imagem positiva da produção leiteira.
Professora Lívia realiza treinamento de equipe antes da pandemia Covid-19. — Foto: Arquivo Pessoal
Estudos conduzidos pelo Grupo ETCO da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias (FCAV-UNESP), Campus de Jaboticabal (SP), têm mostrado que quanto mais cedo acontecem os contatos positivos com os animais, melhores são as respostas referentes à docilidade dos mesmos, no futuro. A partir de utilização de boas práticas de manejo (melhoria nas instalações e no sistema de aleitamento e melhor interação humano-animal) foi observada redução de 50% na mortalidade dos bezerros durante a fase de aleitamento, associado a isto o novo manejo implicou também na redução significativa na ocorrência de doenças, em particular da diarréia, cuja ocorrência reduziu de 76,9 para 13,3% dos bezerros avaliados, da mesma forma para a porcentagem de animais com quadro clínico de desidratação, que foi reduzida de 28,2 para 10,8%. A proximidade com o homem favorece a observação prévia de sinais clínicos de doenças como diarreia, pneumonia e bicheira, por exemplo.
“O quanto antes esses problemas forem identificados, mais barato e eficaz será o tratamento. Além disso, iniciativas como utilizar a aplicação de anestesia e analgesia antes do amochamento dos bezerros a adoção de anestesia e analgesia para promover a adoção de boas práticas de bem-estar animal durante têm sido estimuladas por laticínios junto aos seus fornecedores de leite. Esta mudança é muito importante para proporcionar maior visibilidade na questão dos benefícios da adoção das boas práticas de manejo e para encorajar os demais produtores a também adotarem tais técnicas, a fim de juntos promoverem a imagem da cadeia produtiva do leite”, finaliza Lívia.
A busca por maior qualidade na produção de leite passou a se tornar uma realidade na produção leiteira. — Foto: Arquivo Pessoal