Ordenha diária passou de 500 para mais de 2 mil litros com medidas estratégicas simples.
“Quando ouvi que podíamos chegar a 2 mil litros de leite por dia eu respondi: ‘Que perigo!’”, diverte-se Seu Antônio Abreu, no alto de seus 81 anos. Hoje, ri da própria descrença e assume que, na verdade, não enxergava os potenciais da Capão do Cedro, propriedade a 5km de Morro do Ferro, distrito de Oliveira. De lá saem, todos os dias, cerca de 2,1 mil litros de leite, contingente considerado “impossível” de ser alcançado em 2017, quando representantes da propriedade se inscreveram no Gestão com Qualidade no Campo (GQC).
O programa é realizado na região numa parceria entre Sicoob Credivertentes e Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar). Deu tão certo que, logo depois, vieram as consultorias do Balde Cheio, fruto da união entre a cooperativa de crédito e a Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de Minas Gerais (Faemg). Foi nesse processo, aliás, que os próprios discursos mudaram. Eduardo Pedrosa, 28 anos, passou a balançar a cabeça e repetir “confio plenamente no que tá me dizendo” como um mantra de serenidade. Já o irmão caçula, Renato Pedrosa, 19 anos, acrescentou a energia peculiar numa família que “cedo madruga” para começar a ordenha, por volta de 4h: “Então vamos lá!”.
Família – Lucimara Pedrosa era uma menininha de 10 anos quando decidiu: queria cansar o braço na roça, debaixo do sol quente, pra ajudar o pai, Seu Antônio. “Tive duas filhas, né? Naquela época, ‘menina mulher’ crescia, casava, tinha a própria família e cuidava dela. Não achei que cuidar das minhas vaquinhas fosse virar negócio. Era uma maneira de sobreviver com dias contados, porque morreria comigo”, conta ele.
Acontece que Lucimara contrariou mesmo as estatísticas e as tradições. Antes até de se tornar adolescente, fazia questão de atuar no pedacinho de chão que amava. Adulta e mãe de dois garotos, viu os herdeiros seguirem o mesmo caminho. “Eduardo e Renato mal tinham um metro de altura e já queriam ordenhar. Eram mais agarrados ao avô do que a qualquer outra pessoa”, conta ela. O marido dela, João Geraldo Pedrosa, fecha o time do Agronegócio Familiar que se formou na Capão do Cedro.
Persistência – Nem sempre, porém, a dinâmica foi simples. João Geraldo confessa, resiliente, que até bem pouco tempo via o investimento em empresas rurais com receio. “Incentivava os meninos a estudarem, pegarem a estrada e buscarem um caminho diferente. Escolheram ficar aqui e compreendi de coração apertado. Tive medo de que não desse certo. Qual pai não é assim?”, questiona.
Renato, o filho caçula, não se assusta. Segundo ele, parte das lembranças mais vívidas da escola trava na clássica curiosidade sobre “o que ser quando crescer”. “A molecada levantava a mão e respondia ‘médico’, ‘empresário’, ‘astronauta’. Eu falava todo acanhado que queria trabalhar na roça. Não porque tivesse vergonha, mas porque logo depois eu sentia os olhares de susto. Naquela época, ficar no campo significava falta de perspectiva. Era como se eu dissesse ‘não quero futuro algum’”, lembra. Atualmente, se orgulha de perceber que a teimosia em família deu certo. Mas reconhece que foi preciso abrir a mente, se arriscar, se transformar. Os programas GQC e Balde Cheio fizeram a diferença nessa hora.
Aprendizado – Os números “ousados”, que citamos no início da matéria, foram previsão de Bernardo Barros, instrutor do Gestão com Qualidade no Campo (GQC) e guiaram toda a dinâmica do curso mesclando aulas e consultorias ao longo de três meses. Nesse período, uma frase dele ressoou com frequência: “É preciso anotar e fazer contas”.
É, na verdade, um “mantra gerencial” que resume em poucas palavras o programa – e, claro, os ensinamentos de Barros: “A primeira e mais importante transformação é de visão. Os produtores nem sempre enxergam que têm além da porteira, na verdade, uma empresa rural – e que eles próprios são, portanto, empresários. É preciso diagnosticar o negócio, ter ciência do potencial que está ali nas mãos e desfrutar dele. Ou seja: ter quem sabe, além de sobrevivência, lucros na atividade”, costuma dizer.
Lucimara, hoje, entende isso como ninguém. Aliás, está mais do que familiarizada com entradas e saídas, relatórios, cálculos, planejamento. Cabe a ela cuidar da gestão na Capão do Cedro enquanto pai, marido e filhos implementam as estratégias hoje sugeridas e debatidas com outro profissional, o responsável-técnico pelo Balde Cheio, Lucas Lara. “O produtor que procura apoio e consultoria é um ruralista que mostra, com essa atitude, ter uma mente aberta. Na Capão do Cedro isso fez a diferença. São pessoas de diferentes gerações se entendendo, pensando no futuro. Em 2020 batemos a meta de todo o ano já em agosto. Algo que diz muito. Acredito que, em bem pouco tempo, a família será a maior produtora de leite no Campo das Vertentes e terá crescido, também, no trabalho com gado de corte, que já foi iniciado”, avalia ele.
Para o gerente de Negócios do Sicoob Credivertentes, Rogério Ladeira, esse ciclo evolutivo e de sustentabilidade prova o poder da cooperação. Além disso, solidifica as parcerias históricas entre a cooperativa de Crédito, o Senar e a Faemg. “O GQC e o Balde Cheio se complementam, de modo que homens e mulheres do campo ganhem apoio técnico, força e motivação. Costumo dizer que ambos, na verdade, fazem mais do que transformar propriedades e culturas. Eles transformam vidas, economias”, explica o gerente de Negócios da Credi, Rogério Ladeira.
Tempo – Os jovens Eduardo e Renato sempre tiveram um compromisso fixo: correr para as baias da Capão do Cedro logo depois da escola. Eles assumem, aos risos, que era o melhor momento do dia – e que passar a manhã confinados em carteiras escolares não era o mais interessante dos programas. Em 2017, porém, entenderam que para levar a propriedade adiante precisariam retornar justamente para as salas de aula. Naquele ano, o GQC desembarcou em Morro do Ferro, Distrito de Oliveira. Associados ao Sicoob Credivertentes na comunidade, Eduardo e a mãe, Lucimara, aceitaram o convite para participar do programa. E durante três meses assistiram a oito módulos de ensino presenciais, além de consultorias.
Era ali que Renato, ainda adolescente, se encaixava. Curioso e disposto, ouvia e anotava tudo o que o técnico Bernardo Barros apresentava – quase sempre acompanhado pelo simpático e sonhador Seu Antônio. Não foi difícil, assim, compartilhar o aprendizado e, ainda, multiplica-lo. Isso porque, além dos Pedrosa, outras três pessoas são empregadas diretamente na fazenda. Terminado o curso, veio o apoio do Balde Cheio com acompanhamento e orientações técnicas mensais. “Houve uma época em que a gente não sabia direito o que era nem o que fazia. (risos) A gente tinha gado de leite e corte, tirava uma rendinha satisfatória, dormia feliz. Mas faltava algo”, diz Eduardo. “Faltava organizar, faltava saber do que éramos capazes e onde queríamos chegar. A bem da verdade, faltava confiança em nós mesmos”, acrescenta.
O pai da dupla, João Pedrosa, suspira resiliente: “É engraçado porque a gente acaba tendo uma postura desconfiada sem perceber. A princípio, reagi como São Tomé, queria ‘ver pra crer’ – e no fundo tinha medo de a gente se iludir com possibilidades que não eram nossas. Quadriplicar a produção, por exemplo, sem investir rios de dinheiro? Pra mim era impossível. Ainda bem que estava errado”, assume.
Mudanças – Há 3 anos, quando todo o processo de transformação começou, a Capão do Cedro tinha 130 vacas em lactação produzindo 500 litros por dia – tudo armazenado, então, num único tanque. Em agosto de 2020, o contingente quase quadruplicado já vinha de rebanho menor (mas requalificado) com 107 animais. Ficava, então, em dois tanques de 1,5 mil litros com saída diária para o mercado. Crescimento resultado de pastejo rotacionado, balanceamento de dieta animal, controles sanitários e de qualidade, cuidados com recria.
Para os Pedrosa, aliás, a maior surpresa do GQC e do Balde Cheio foi a capacidade de ambos os programas evidenciarem mudanças possíveis, com “botinas no chão”, como dizem na Capão do Cedro. “Pode acreditar: não precisamos comprar animais pra mudar. Ao contrário, a gente reestruturou o rebanho que já tinha, separou as vacas produtivas pra Pecuária de Leite e direcionou o gado pra Pecuária de Corte”, explica Eduardo.
A questão nutricional também ganhou destaque. Com planejamento e controle na dieta dos animais, toda a produção foi otimizada. Com isso, foi possível apostar na estrutura do local, com a construção de uma pista de trato e um novo galpão, além de melhoramentos tecnológicos nas ordenhas. Na gestão em si, o grande trunfo foi a organização e redistribuição de funções. “Antes a gente focava na parte braçal, no suor mesmo”, confessa Renato. “Agora entendemos os papéis de cada um. Olhamos uns pros outros com orgulho, conversamos abertamente e até aceitamos melhor a teimosia que todo mundo tem”, brinca Eduardo para alegria do avô, Seu Antônio, que completa. “Nenhum negócio funciona sem amor. E aqui a gente tem de sobra”.
Bacia Leiteira – O mapa de atuação do Sicoob Credivertentes abrange uma bacia leiteira poderosa. Em 2019, segundo dados do IBGE, 20 municípios do Campo das Vertentes e a capital mineira, Belo Horizonte, somaram 345,6 milhões de litros de leite ordenhados. Nesse grupo a cidade de Oliveira – a que está associado o distrito de Morro do Ferro – acumulou sozinha 13,7 milhões de litros. Uma robustez que acompanha potências locais como São João del-Rei, com 57,7 milhões de litros; São Tiago, com 36 milhões; e Nazareno, somando 29,7 milhões. O crescimento médio no total de produção, só nessas localidades, foi de 11%.
Ponto para o Agronegócio, ponto para o Estado como um todo, que ocupa o topo no ranking leiteiro nacional. Também no ano passado, Minas Gerais bateu recorde de ordenha, produzindo mais de 9,4 bilhões de litros de leite, um adendo de quase 6% na comparação com 2018 e, mais do que isso, uma representatividade importante: na ponta do lápis, esse total corresponde a 27,1% de toda produção nacional. Ou seja: 1/5 do leite que vai para indústria ou para a mesa dos brasileiros tem origem em MG.
GQC e Balde Cheio – Realizado pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar), o Gestão com Qualidade no Campo (GQC) foi implementado na região, em parceria com o Sicoob Credivertentes, em 2007. De lá pra cá, 260 ruralistas foram capacitados, promovendo mudanças em 130 empresas rurais de 11 comunidades. A meta do programa é levar noções de administração e planejamento aos empreendedores, que passam a ver suas fazendas como verdadeiras “empresas rurais”. Nesse processo, com aulas e consultorias, desenvolvem Planos de Gestão para cada negócio e reestruturam práticas com resultados em curto prazo.
Já o Balde Cheio, promovido pela Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de Minas Gerais (Faemg), passou a integrar o leque de ações profissionalizantes na Credi em 2011. Atualmente, 55 pecuaristas de 12 localidades recebem acompanhamento técnico e capacitação sobre tecnologias, estratégias sustentáveis de aprimoramento produtivo, manutenção de rebanho, produção de alimentos e outras pautas. O resultado? O desenvolvimento de propriedades familiares com posicionamento mais competitivo no mercado.