o Brasil da crise política e econômica até o leite passou a ser fake news. A estratégia das empresas de vender compostos lácteos para crianças pequenas com embalagens muito parecidas ao leite em pó e a fórmulas infantis não era novidade para a maioria dos consumidores, mas a notícia dos últimos meses é que agora os laticínios, com fórmulas alteradas, também estão entrando nessa onda de desinformação.
Muitas marcas passaram a utilizar “misturas lácteas” ou “misturas alimentícias”, contendo ingredientes mais baratos, para substituir partes do leite in natura em alimentos minimamente processados e ultraprocessados. Resultado disso foi a inundação de soro de leite, amido, gorduras vegetais, açúcar e aditivos químicos (como aromatizantes e saborizantes) em queijos, manteigas, iogurtes, requeijões, cremes de leite e leites condensados.
Mesmo em conformidade com as normas de rotulagem do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), as novas fórmulas têm menor valor nutricional e não são indicadas para crianças.
“As empresas montam embalagens similares ao produto original e isso leva o consumidor ao engano”
Quem explica é a nutricionista e supervisora técnica do programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Laís Amaral. Por conta da menor quantidade de leite nas fórmulas, os alimentos também passam a apresentar diferença em sua textura. “Alguns desses novos produtos incorporam ainda mais aditivos alimentares para recuperar prejuízos sensoriais”, diz.
Para se ter uma ideia, enquanto o leite em pó contém 4,9g de açúcar em 100ml de produto diluído, um composto lácteo contém 8,5g, conforme indica a Rede Internacional em Defesa do Direito de Amamentar (Ibfan). Em maio de 2022, o Idec entrou com Ação Civil Pública contra a Nestlé Brasil, a Mead Johnson Brasil e a Danone, em virtude das estratégias de marketing que vendem compostos lácteos com embalagens e narrativas muito semelhantes a de fórmulas infantis e leite em pó, induzindo famílias com crianças ao erro.
‘Leia o rótulo’
Embora haja uma piora na composição desses alimentos, muitos dos produtos originais já se tratavam de ultraprocessados e, portanto, não indicados às crianças, caso do creme de leite, achocolatados e leite condensado. “Acontece que eles têm estratégias publicitárias voltadas para o consumo da população infantil, fazendo com que as pessoas assimilem ‘doce’ à comida de criança”, explica Laís.
O “Guia alimentar da população brasileira” e o “Guia alimentar para crianças brasileiras menores de dois anos” indicam que é preciso priorizar dietas baseadas em alimentos in natura ou minimamente processados. “O leite integral e iogurtes naturais estão nesta categoria, mas as bebidas lácteas não”, atenta a advogada do Grupo de Trabalho Comida de Criança, da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, Fernanda Mainier Hack. Ou seja, o problema dessa mudança de oferta está em transformar comidas recomendáveis para as crianças em ultraprocessados, mas continuar chamando produtos como danoninhos para bebês e outras bebidas lácteas de “iogurte” ou “leite”.
Uma explicação para essa nova oferta está na inflação e escassez da matéria-prima no mercado. Em dois anos, o custo de produção do leite, por conta do aumento no preço de rações bovinas, luz elétrica e combustíveis, subiu 62%, segundo a Embrapa. Com isso, a disponibilidade de leite também caiu em quase 800 mil litros entre o total disponível no terceiro trimestre de 2021 e no segundo trimestre de 2022, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
“Nosso sistema tributário acaba beneficiando produtos ultraprocessados com isenções fiscais e benefícios para o consumidor, enquanto alimentos in natura acabam tendo menos subsídios, o que faz com que comprar uma Coca-Cola custe menos que um litro de leite”, aponta Fernanda. Nesse caso, umas das preocupações é quando esses produtos ultraprocessados chegam nas escolas por estratégias comerciais das empresas ou mesmo em cestas básicas por meio dos programas de distribuição de alimentos.
Em 2020, uma resolução do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) determinou que a alimentação nas escolas públicas vinculadas ao programa seja baseada no Guia Alimentar da População Brasileira, com 30% dos produtos oriundos da agricultura familiar. Além disso, as compras de compostos lácteos foram proibidas em creches. “É preciso haver fiscalização”, diz Fernanda.
Nem todos os novos produtos apresentam informação em destaque sobre a mudança na fórmula. Por isso, de acordo com as especialistas entrevistadas pelo Lunetas, para evitar surpresas e produtos com qualidade inferior, só há uma opção: ler o rótulo. A própria denominação de venda, que é o nome oficial do produto descrito em letras pequenas na frente da embalagem, já traz pistas sobre o que está sendo consumido., permitindo ver se há a palavra ‘sabor’, ou ‘mistura’ que indica presença de ingrediente artificial”, atenta Laís. Por exemplo, na embalagem do leite condensado, o produto original é descrito como “leite condensado semidesnatado”, enquanto o novo é “mistura láctea de leite, soro e amido”. O essencial, segundo ela, é a leitura da lista de ingredientes onde se encontram os detalhes da composição: “Se há nomes que você não identifica como alimento já é um indicativo de que aquilo é um produto ultraprocessado.”
Pediatras e nutricionistas infantis levam em consideração os guias alimentares oficiais do Ministério da Saúde, portanto, sugerem excluir ultraprocessados da alimentação de crianças abaixo de dois anos e contraindicam que esses alimentos estejam na rotina de outras faixas-etárias. Isso porque o consumo desses alimentos, que são considerados mais palatáveis, já que ‘escravizam’ o paladar da criança, estão diretamente relacionados à má nutrição, que possui duas faces extremas: a desnutrição e a obesidade. O teor elevado de gordura, açúcares e sal pode levar ao desenvolvimento precoce de doenças crônicas não transmissíveis como diabetes, cânceres e hipertensão.
Níveis de processamento
A seguir, os quatro grupos de alimentos segundo a classificação Nova, do Guia alimentar para a população brasileira:
(Fonte: Idec)
Alergias alimentares
De acordo com a Anvisa, mais de 170 alimentos já foram descritos como causadores de alergias alimentares, sendo que oito deles merecem atenção especial por serem responsáveis em cerca de 90% dos casos internacionalmente: ovo, peixe, crustáceos, castanhas, amendoim, trigo, soja e o nosso protagonista, o leite. Por isso, desde 2015, uma resolução do Ministério da Saúde (RDC 26/15) estabeleceu que os rótulos devem obrigatoriamente informar a existência desses componentes nos alimentos, ingredientes ou aditivos alimentares de produtos.
Embora pessoas alérgicas à lactose não consumam os produtos mencionados, pessoas com outras restrições alimentares precisam estar atentas aos componentes presentes nas novas fórmulas. “Quando aparecem avisos de mudança nas composições dos produtos, eles são muito pequenos, o que pode levar uma pessoa alérgica a consumir um produto contendo algum ingrediente que não pode ingerir”, atenta Fernanda.
Para crianças com diagnóstico de necessidade alimentar especial não há receita senão a restrição completa deste produto, por isso, ela insiste: “É preciso ler o rótulo inclusive dos produtos que você está acostumado a consumir”.