Em setembro passado, Julie Smolyansky, CEO da marca de kefir Lifeway Foods, com sede em Morton Grove, no Illinois (EUA), viu um e-mail preocupante às 4 da manhã no horário de Chicago (11 da manhã em Paris) da Danone, a gigante francesa de laticínios que havia investido pela primeira vez no negócio de seu pai em 1999 e atualmente detém pouco menos de 25% da empresa.
A Danone solicitava uma reunião em três horas. Durante a ligação, os executivos informaram que pretendiam comprar uma participação majoritária na empresa listada na Nasdaq — e não pareciam se importar muito com o que Smolyansky pensava a respeito.
“Nem sequer tive a gentileza de um ‘vamos almoçar’ ou ‘vamos conversar’”, diz Smolyansky, que dirige o negócio de bebidas fermentadas — um primo do iogurte líquido — desde 2002 e que, junto com sua mãe e irmão, controla cerca de 45% das ações da Lifeway. “Não vou ser intimidada”, diz ela. “Não tenho medo.”
A ligação foi o ápice de anos de atritos entre Smolyansky e a Danone, que a Lifeway acusa de uma série de comportamentos nefastos com o objetivo de minar o negócio, incluindo bloquear a expansão internacional da empresa e se recusar a ajudá-la a obter ingredientes crus mais baratos.
Smolyansky também acredita que a Danone usou seu assento no conselho da Lifeway para acessar informações competitivas e segredos comerciais após adquirir a Wallaby Yogurt em 2017.
Smolyansky sustenta que a Lifeway foi prejudicada por décadas pelo acordo de 1999 entre seu pai e a Danone, quando a empresa francesa investiu US$ 6,5 milhões (ou cerca de US$ 12 milhões/R$ 70 milhões em valores atuais) por uma participação inicial de 15% na empresa.
Ela insiste que o acordo, com um “acordo de suporte” assinado em conjunto, se aproveitou da falta de formação acadêmica em negócios de seu pai imigrante. Ela chama a Danone de “predatória” e diz acreditar que uma aquisição pela Danone poderia arruinar o negócio — e a receita — da família, que ela lutou tanto para preservar.
A Danone rebate, dizendo que, apesar da participação da família fundadora na Lifeway, deve defender os direitos de todos os acionistas. “A Lifeway é uma empresa de capital aberto e não um ‘negócio familiar’”, diz um representante da Danone à Forbes. “A Lifeway buscou o investimento da Danone, e sem ele a empresa não seria o que é hoje.”
Após a ligação de setembro com Smolyansky, a Danone ofereceu aos acionistas uma aquisição total a US$ 25 por ação, um prêmio de 19% sobre o preço da ação. O conselho da Lifeway, presidido por Smolyansky, rejeitou a oferta.
Dois meses depois, a Danone aumentou sua proposta para US$ 390 milhões (R$ 2,278 bilhões) ou US$ 27 por ação. O conselho da Lifeway também rejeitou essa oferta, mantendo que, apesar dos prêmios significativos, os valores subestimavam o negócio.
O único analista que cobre a Lifeway, Ben Klieve, da Lake Street Capital Markets, concorda, dizendo que “um processo competitivo de lances provavelmente resultaria em valores bem maiores”.
Negócios no setor de alimentos naturais, observa ele, têm alcançado múltiplos superiores a três vezes a receita — as ofertas da Danone são inferiores a duas vezes. As ações da Lifeway atualmente são negociadas em torno de US$ 24.
Antes da segunda oferta, o conselho da Lifeway aprovou uma defesa contra aquisição hostil conhecida como “pílula venenosa” — que dá aos acionistas o direito de comprar ações adicionais caso qualquer acionista com mais de 20%, como a Danone, aumente sua participação, diluindo qualquer tentativa de aquisição.
A pílula venenosa também impede que a mãe de Smolyansky, Ludmila, e seu irmão Edward vendam suas ações à Danone, a maior acionista individual com quase 23% de participação.
Atualmente, Smolyansky detém cerca de 18% das ações da Lifeway. Edward possui quase 21% e Ludmila, 6%. (Edward contesta a contagem total de ações da irmã e acredita que mais de 300 mil ações são inválidas).
A participação familiar combinada foi superior a 50% por anos, mas caiu abaixo do limite à medida que ações foram sendo vendidas. A família só pode vender até 2% das ações anualmente, de acordo com o acordo de acionistas de 1999. Se venderem mais, a Danone tem o direito de preferência.
Danone e as tentativas hostis
A Danone contesta que suas tentativas de aquisição tenham sido hostis.
A gigante de laticínios, que teve receita de US$ 29 bilhões (R$ 169,4 bilhões) em 2024, entrou com um processo no mês passado na corte estadual de Illinois alegando que a Lifeway violou seu acordo de acionistas com a Danone ao emitir cerca de US$ 7 milhões (R$ 40,9 milhões) em ações para Smolyansky em dezembro de 2024.
“Isso foi uma violação flagrante do acordo de acionistas entre Danone e Lifeway, que a Lifeway havia respeitado, reconhecido como válido e citado em documentos arquivados na SEC por mais de 25 anos”, diz o representante da Danone.
“Essa ação judicial tem como objetivo proteger os direitos da Danone como acionista significativa da Lifeway e não está relacionada às tentativas de boa-fé da Danone de negociar um acordo para adquirir a Lifeway.”
A Lifeway apresentou uma ação judicial em resposta na semana passada, negando ter violado seu contrato ou seu dever fiduciário com a Danone, e alegando que a gigante francesa agiu de má-fé ao ter “causado danos à Lifeway e seus acionistas”.
Para complicar ainda mais as coisas — como se já não fossem complexas — a mãe e o irmão de Smolyansky não estão do seu lado. Após o conselho demitir seu irmão mais novo, Edward, em 2022, Smolyansky vem enfrentando uma batalha de procuração liderada por Edward e pela mãe há três anos para substituí-la como CEO.
Em novembro do ano passado, dois meses após a oferta inicial da Danone, Edward e Ludmila declararam publicamente que apoiam a venda. “Só queremos que isso se resolva sem mais derramamento de sangue”, diz Edward, 45 anos.
A disputa tomou outro rumo em janeiro, quando Smolyansky entrou com um processo contra o irmão envolvendo 1,3 milhão de ações, representando cerca de 8,5% da empresa. Segundo o processo, o testamento do pai dividia as ações igualmente entre ela, Edward e a mãe.
Mas os irmãos, então com cerca de 20 anos e sem representação legal fora dos advogados da empresa, supostamente concordaram em transferir sua parte para a mãe para evitar impostos. Na época, Smolyansky e Edward já possuíam cada um 1,9% da empresa.
O processo afirma que o plano era que Ludmila transferisse posteriormente as ações de forma igualitária para os filhos. E isso começou em 2015. Mas a última transferência igualitária foi em 2019.
Todas as ações desde então foram para entidades controladas por Edward, segundo a queixa, que alega que Ludmila ofereceu retomar a divisão equitativa se Edward fosse readmitido na Lifeway com um salário de US$ 1 milhão (R$ 5,84 milhões).
Edward não quis comentar o processo em andamento e entrou com uma moção para arquivamento no final de março. Smolyansky diz que está pronta para a batalha.
“Venho de uma longa linhagem de sobreviventes da União Soviética, uma terra de guerra, escassez e fome”, diz Smolyansky, observando que sua avó sobreviveu ao massacre de Babyn Yar em 1941, em Kyiv. “Todos os meus antepassados estão comigo e estão me ajudando. Tenho a obrigação de continuar lutando e sobrevivendo.”
Sua mãe, Ludmila, de 75 anos, parece não ver dessa forma. Em uma declaração contundente compartilhada com a Forbes por meio de um porta-voz, ela afirma: “Sob a liderança equivocada de minha filha Julie, o conselho priorizou o controle em detrimento da justiça, jogando fora os valores que fizeram da Lifeway um sucesso.
Em vez de respeitar os acionistas e promover uma concorrência aberta, utilizaram intimidação legal e manobras corporativas para consolidar o poder — ignorando as vozes daqueles que ajudaram a construir uma empresa extraordinária. Isso não é o sonho americano. Isso não é capitalismo. É hipocrisia.”
Um prêmio que vale a luta
A Lifeway é um prêmio que vale a luta. Após mais de cinco anos consecutivos de crescimento recorde, agora detém 95% do mercado da categoria de kefir que ajudou a popularizar.
As bebidas fermentadas da Lifeway, benéficas para o intestino, são vendidas em quase todos os principais varejistas dos EUA, incluindo Walmart, Amazon, Kroger, Costco, Safeway e Whole Foods.
As vendas anuais chegaram a US$ 186 milhões no ano passado (R$ 1,086 bilhão), um aumento de 17% em relação ao ano anterior.
A margem de lucro líquido da empresa dobrou desde 2021, superando 6,5%, e a Lifeway não tem dívidas. Se a Danone tem sabotado o negócio por décadas, não tem feito um bom trabalho. Smolyansky afirma, como era de se esperar, que a Lifeway prospera apesar das manobras da Danone.
A história de Smolyansky e seus pais, que fundaram a Lifeway após fugirem da União Soviética e desertarem para os Estados Unidos nos anos 1970, foi durante décadas um clássico conto de sucesso do sonho americano.
Em 1976, a então bebê Smolyansky, nascida em Kyiv, fugiu da União Soviética com os pais. A família de três pessoas “desertou no meio da noite” com o equivalente a US$ 116 no bolso. Após três meses como refugiados em Roma, se estabeleceram em Chicago.
Tendo trabalhado como cabeleireira e manicure, Ludmila Smolyansky chorou ao ver pela primeira vez a abundância de um supermercado americano — e logo ela e o marido Michael abriram a primeira delicatessen ucraniana de Chicago em 1978. No ano seguinte, Ludmila deu à luz Edward.
Anos depois, enquanto caminhavam pelos corredores de uma feira de alimentos na Alemanha para um negócio de importação de alimentos que possuíam, viram a bebida láctea fermentada kefir sendo promovida. “A América tem tudo”, disse Michael, “mas não tem kefir.”
Os Smolyansky fermentavam kefir em casa havia gerações, então Michael convenceu sua mãe na Ucrânia a enviar secretamente algumas das culturas da família. Ela escondeu o contrabando em um par de meias-calças femininas.
“É um verdadeiro legado familiar dessa receita original”, diz Smolyansky. “Você não inventa isso em um escritório de private equity.”
Graças às conexões do casal no varejo e em mercearias, seu kefir, uma bebida tradicional de saúde em grande parte da Europa Oriental, conquistou distribuição em dezenas de lojas nos EUA e encontrou um público instantâneo entre os imigrantes soviéticos.
Mas Michael sonhava mais alto. Após pesquisar IPOs na biblioteca local e escrever seu próprio plano de negócios, tornou-se o primeiro imigrante soviético a abrir capital de uma empresa nos EUA, quando a Lifeway estreou na Nasdaq em 1988.
A Lifeway até teve um pequeno papel no fim da Guerra Fria. Durante a Cúpula de Moscou em 1988, o presidente Ronald Reagan presenteou o presidente soviético Mikhail Gorbachev com um engradado de kefir da Lifeway — como prova do que refugiados soviéticos podem alcançar em uma economia de mercado livre.
Aos 11 anos, Julie Smolyansky ajudava seu pai a distribuir amostras em supermercados locais. Um ano após iniciar o mestrado na Illinois School of Professional Psychology, em 1996, largou tudo para trabalhar em tempo integral na Lifeway. O negócio tinha receita anual de US$ 6 milhões, equivalente a cerca de US$ 12 milhões hoje.
Smolyansky estava sendo preparada para liderar a empresa, mas isso aconteceu muito antes do que imaginava — em 2002, Michael morreu de um ataque cardíaco repentino.
Durante a shivá naquela noite, Smolyansky lembra de ouvir um amigo do pai dizendo: “Não há como uma garota de 27 anos dirigir essa empresa. Venda suas ações.” No dia seguinte, as ações despencaram quase 30%.
Mas, graças à participação de 51% da família e ao voto do conselho independente da Lifeway, Smolyansky ainda se tornou CEO, afastando um advogado da empresa que, segundo ela, tentava secretamente se tornar CEO. Aos 27 anos, ela se tornou a CEO mais jovem de uma empresa de capital aberto nos EUA.
Logo após assumir, Smolyansky diz ter percebido que o negócio estava sendo limitado pelo acordo feito por seu pai com a Danone.
Ela afirma que a Lifeway havia recebido promessas de ajuda com distribuidores e corretores de vendas, bem como apoio na compra de leite para obter melhores preços, conforme detalhado no acordo de suporte assinado junto com o de acionistas.
Esse acordo durava três anos. Mas, segundo ela, nada aconteceu. E nunca foi renovado. Pior ainda, o contrato estipulava que, sem o consentimento da Danone, a Lifeway não poderia acessar outros financiamentos, como investimentos estratégicos, e Smolyansky não poderia receber opções de ações como CEO.
“Eles balançaram uma cenoura na frente do meu pai imigrante ingênuo, com uma empresa global batendo à porta”, diz Smolyansky. “Não podemos mover para a esquerda ou para a direita, para cima ou para baixo. Eles nos sufocaram. Mentiram para nós.”
A Danone nega que tenha impedido ou obstruído a Lifeway ao longo dos anos e descreve a Lifeway e a família Smolyansky como “contrapartes empresariais sofisticadas representadas por assessores igualmente sofisticados”.
E mesmo que a Danone tenha se recusado a ajudar a Lifeway a expandir internacionalmente, Smolyansky o fez de qualquer maneira. A Lifeway é vendida em pelo menos sete países fora dos EUA, incluindo França, Irlanda, México e África do Sul.
Ao longo dos anos, Smolyansky tentou romper o contrato. A Danone afirma ter cumprido suas obrigações, depois de fornecer à família Smolyansky o capital desejado, e que está defendendo o acordo de acionistas na Justiça.
Mas Smolyansky agora argumenta que o contrato é ilegal segundo a lei estadual de Illinois, pois nunca foi aprovado por todos os acionistas.
E à medida que a parceria azedou, o sonho americano dos Smolyansky se transformou em um pesadelo. O contrato exacerbou divisões na família, pois impedia os acionistas da Lifeway de considerar livremente uma saída. “Esse contrato prejudicou minha família”, diz Smolyansky. “Criou um estresse desnecessário para nós.”
O drama familiar se desenrola há quase uma década. Em 2019, o conselho contratou um escritório de advocacia independente para investigar a conduta de Edward. Isso resultou em sua remoção como tesoureiro da Lifeway e seu afastamento administrativo.
A saga tomou um rumo especialmente amargo em 2022, após uma segunda investigação independente levar o conselho a votar pela demissão de Edward, com a irmã se abstendo.
Então COO e diretor do conselho da Lifeway, ele havia trabalhado na empresa por 20 anos. Depois disso, Edward não se candidatou à reeleição para o conselho.
O contrato de consultoria de Ludmila também terminou. Pouco depois, ela renunciou ao conselho. “Foi uma traição completa”, lembra Edward, que acrescenta que, após ser hospitalizado em 2022, está mais feliz e saudável. Atualmente, Smolyansky tem uma ordem de restrição contra ele.
Uma votação geral dos acionistas sobre o conselho está prevista para a assembleia anual da Lifeway, provavelmente neste verão no país, entre junho e agosto. Edward, cujas ações representam 18% do poder de voto total, prevê que sua irmã e o conselho perderão a eleição.
Ludmila tem 6% e vota oficialmente em conjunto com Edward. Smolyansky detém 14,5% dos votos. “Estamos do lado de todos os acionistas, inclusive da minha irmã”, diz Edward. “Mas é hora de todos saírem do caminho. Deixar que os profissionais assumam esta marca.”
Smolyansky responde que o irmão não está agindo no melhor interesse dos acionistas, mas por vingança contra ela. A empresa, ela insiste, nunca esteve tão forte. Nos últimos cinco anos, os acionistas desfrutaram de um retorno de 1.175%.
E Smolyansky aponta para aquisições passadas da Danone nos EUA — especialmente a compra da WhiteWave Foods, do Colorado, por US$ 12,5 bilhões (R$ 73 bilhões) em 2017, que incluía a Horizon, maior marca de laticínios orgânicos dos EUA, bem como a concorrente Wallaby — como um alerta.
Sob a Danone, a Horizon parou de comprar leite na Nova Inglaterra e dispensou 89 fazendas orgânicas, desestruturando os negócios de famílias que forneciam para a marca há anos.
Depois, quando o fraco desempenho da divisão orgânica derrubou as vendas e margens operacionais da Danone, a empresa vendeu a maior parte da Horizon e da Wallaby — então responsáveis por 3% da receita global da Danone — para uma firma de private equity sediada na Califórnia.
Sobre a Danone, Smolyansky diz: “Eles vão apagar a receita da minha avó, nosso legado, essa história ucraniana, tudo o que fizemos?”