A crise do leite que atinge a China expõe o outro lado de uma política ambiciosa: a busca pela autossuficiência alimentar.
O resultado? Um mercado “inundado” por mais de 42 milhões de toneladas de leite cru que ninguém quer comprar. O excesso de oferta derrubou os preços a níveis abaixo dos custos de produção e colocou milhares de produtores em alerta máximo.
Nos últimos seis anos, o governo chinês incentivou fortemente o aumento da produção de leite. O discurso oficial era claro: reduzir a dependência de importações e fortalecer a segurança alimentar nacional. O plano parecia funcionar — a produção saltou de 30,3 milhões de toneladas em 2017 para quase 42 milhões em 2023, superando inclusive a meta prevista para 2025.
Por trás desse crescimento, houve investimentos bilionários em infraestrutura, genética de alto rendimento e tecnologia. Milhares de vacas importadas, sobretudo da Nova Zelândia e Austrália, passaram a integrar os rebanhos locais. Mas o crescimento da demanda — que deveria sustentar essa avalanche produtiva — simplesmente não veio.
O consumo estagnou (e começou a cair)
Enquanto a oferta disparava, o consumo de lácteos na China começou a mostrar sinais de fadiga. O consumo per capita caiu de 14,4 kg em 2021 para 12,4 kg em 2022, segundo dados do setor. A combinação de uma população envelhecida, queda nas taxas de natalidade e uma economia em desaceleração reduziu o apetite por produtos lácteos.
Além disso, fatores culturais e fisiológicos jogam contra o consumo: o leite nunca teve papel central na dieta chinesa e a intolerância à lactose atinge uma parcela significativa da população. A preferência por produtos de menor valor agregado — como leite fluido — em detrimento de queijos e iogurtes premium agravou a situação.
Preços despencam abaixo do custo
Com o desequilíbrio evidente, o preço do leite cru despencou. Em 2022, segundo estimativas industriais, o valor pago aos produtores caiu abaixo do custo médio de 3,8 yuans por quilo. O impacto foi devastador. Pequenas e médias fazendas passaram a operar no vermelho, reduzindo rebanhos ou encerrando as atividades.
Um grande produtor relatou ter reduzido seu rebanho pela metade no primeiro semestre de um único ano, acumulando prejuízos significativos. O caso ilustra uma tendência generalizada: os custos continuam altos — sobretudo com ração e logística — enquanto a renda dos produtores evapora.
Sem saída: nem exportar, nem armazenar
A possibilidade de exportar o excesso também é limitada. Os custos internos da cadeia láctea chinesa seguem elevados, em parte devido à dependência de insumos importados, como o milho e a soja para ração. Além disso, os compradores internacionais mantêm cautela desde o escândalo da melamina em 2008, quando o leite adulterado gerou uma das maiores crises de segurança alimentar da história da China.
Sem canais de exportação e com capacidade de processamento saturada, muitos produtores optaram por descartar o leite cru, incapazes de absorver o custo adicional de transformá-lo ou transportá-lo. É o retrato mais cruel da crise: um país que luta por autossuficiência, mas vê sua produção virar desperdício.
O impacto global e o novo mapa do comércio lácteo
O colapso interno tem reflexos no comércio internacional. O excesso doméstico reduz a necessidade de importar leite em pó e leite fluido, pressionando exportadores tradicionais como Nova Zelândia, Austrália e União Europeia. Por outro lado, ainda há espaço para nichos de maior valor agregado — iogurtes funcionais, queijos finos e produtos fermentados — nos grandes centros urbanos chineses, onde cresce a classe média jovem e aberta a novos hábitos alimentares.
Enquanto isso, dentro do país, as indústrias buscam consolidar-se para sobreviver. O cenário favorece a concentração: grandes grupos absorvem produtores menores e investem em diversificação de portfólio. Já os pequenos e médios agricultores, que sustentaram a base da produção por décadas, enfrentam um futuro incerto.
Uma lição de excesso e desequilíbrio
A crise do leite na China é um lembrete contundente de que planejar produção sem medir a demanda é receita certa para o colapso. A pressa em garantir autossuficiência transformou um objetivo estratégico em uma armadilha econômica e ambiental: milhares de litros de leite desperdiçados, fazendas endividadas e um setor em busca de reequilíbrio.
Enquanto o governo analisa ajustes em suas metas e políticas de subsídio, o setor global observa atento. O destino do leite chinês — ou sua falta de destino — redefine não apenas a economia rural do país, mas também o tabuleiro mundial do comércio lácteo.
*Escrito para o eDairyNews BR, com informações de EDairy News English






