Com um movimento ousado que desafia décadas de integração vertical no setor agroindustrial, a Fonterra anunciou que irá desinvestir totalmente de suas marcas de consumo e focar seus esforços nos segmentos de ingredientes B2B e foodservice.
A decisão marca uma mudança profunda de estratégia e promete reverberar em toda a cadeia láctea global — da genética à precificação no campo.
A cooperativa, que processa cerca de 15 bilhões de litros de leite por ano, colocou à venda ativos que representaram 19% do EBIT no primeiro semestre do ano fiscal 2024, incluindo marcas como Anchor, Mainland, Anlene, Anmum, Fernleaf e Western Star.
A operação deve render cerca de US$ 2,7 bilhões, e o processo de venda ou IPO está previsto para ocorrer em até 18 meses.
Lucro, foco e especialização
Embora o segmento de consumo tenha apresentado melhora (NZ$ 248 milhões em EBIT no FY24, ante -74 milhões no FY23), os maiores lucros continuam vindo do negócio de ingredientes (NZ$ 741 milhões) e foodservice (NZ$ 451 milhões), este último com crescimento anual de 81%.
Fonterra quer, agora, simplificar sua operação e concentrar-se onde tem vantagem competitiva clara.
Para o CEO Miles Hurrell, a cooperativa não é o melhor dono para negócios de consumo no longo prazo. “Vamos focar no que fazemos de melhor”, disse.
A aposta agora é ampliar a liderança nos mercados globais de proteínas lácteas funcionais, por meio da marca NZMP, e em soluções para o canal foodservice, com Anchor Food Professionals.
O que isso muda para o produtor?
A decisão lança luz sobre uma questão crítica: onde está o real valor do leite produzido? A tendência de valorizar ingredientes funcionais, como frações proteicas específicas ou compostos bioativos, pode alterar a lógica de remuneração da matéria-prima no campo.
Em vez de premiar apenas volume e composição básica (gordura/proteína), o futuro pode favorecer quem entregar leite com características funcionais adaptadas a nichos premium — como nutrição esportiva, fórmulas médicas ou alimentos funcionais.
A genética leiteira também pode ser impactada. Fonterra não esconde seu interesse por linhagens capazes de gerar maior concentração de proteínas de interesse industrial, sugerindo uma nova fronteira para o melhoramento genético bovino. Para o produtor, a pergunta que fica é: meu leite está alinhado com o mercado do futuro?
Estabilidade no preço ao produtor
Apesar da reestruturação, Fonterra mantém estabilidade em sua previsão de pagamento ao produtor. Para a temporada 2023/24, o preço médio estimado segue em NZ$ 7,80 por kgMS. Para 2024/25, o ponto médio é de NZ$ 8,00, com mais de 90% do volume já contratado.
Isso reforça que a mudança estratégica não é fruto de crise, mas de uma visão clara de onde está o valor a longo prazo.
Um sinal para outras cooperativas?
A decisão da Fonterra deve acender alertas e inspirar debates em cooperativas e indústrias lácteas do mundo inteiro.
Ao abandonar o modelo de controle total da cadeia e concentrar-se em segmentos de alta rentabilidade, a gigante neozelandesa lança um sinal claro: o futuro do leite pode não estar nos corredores do supermercado, mas nos laboratórios de inovação funcional e nutricional.
Se a operação for bem-sucedida, o case Fonterra pode se tornar um divisor de águas, redefinindo estratégias de criação de valor em cooperativas leiteiras — inclusive no Brasil.
*Adaptado para eDairyNews, com informações de The Bullvine