Provavelmente antes do final de 2024, um evento reunindo a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Rio Grande do Sul (Fetag/RS) e a Lactalis, indústria de laticínios de matriz francesa, estabelecida no Estado, deve abrir caminho para um novo modelo de produção na cadeia leiteira.
Inspirado na experiência da avicultura e da suinocultura, que praticam com sucesso o sistema de integração, no qual o produtor é parceiro da indústria e recebe insumos em troca da garantia de matéria prima, o novo modelo pretende baixar o custo de produção para dar estabilidade nos preços ao produtor.
O diretor de Comunicação Externa, Assuntos Regulatórios e Corporativos da Lactalis do Brasil, Guilherme Portella, também presidente do Sindicato da Indústria de Laticínios e Produtos Derivados (Sindilat), explica que o grande problema enfrentado pelo leite gaúcho é a falta de competitividade.
Segundo ele, a perda competitiva está ancorada diretamente no alto custo que precisa ser bancado pelo produtor, o qual reflete no preço final pago pela indústria. “Pela influência do dólar, o preço do leite no Brasil é um dos mais caros do mundo. É mais caro que no Uruguai, na Argentina, na Nova Zelândia ou nos Estados Unidos”, diz Portella.
O modelo de contrato que está sendo estudado pela Fetag/RS e a Lactalis ainda não está completamente definido. “Vamos estipular balizadores de preços e oferecer ao produtor subsídios para que aumente o volume de leite produzido e seu potencial competitivo”, afirma. Esses incentivos virão na forma de assistência técnica e ração a baixo custo para o rebanho, por exemplo.
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Neste ano, durante a Expointer, a Lactalis anunciou o investimento de R$ 100 milhões em ampliações de suas plantas no Rio Grande do Sul. Conforme Guilherme, a empresa trabalha sempre na linha de sua capacidade máxima, para otimizar os custos industriais, Por isso, precisa de uma rede sólida de fornecimento de matéria prima, para atender, entre outras fábricas, a localizada no município de Três de Maio, onde são produzidos queijos e consumidos 1,5 milhão de litros por dia na produção.
Setorialmente, Guilherme Portella diz que são observados momentos do ano em que há menos leite disponível, como nos períodos de entressafra. “Mas nos últimos se observou a chegada de mais laticínios ao Estado, o que também aumentou a procura por matéria prima”, acrescenta.
A aliança entre Fetag/RS e Lactalis vai, contudo, além da necessidade pontual de suprir a demanda de leite da indústria de laticínios. O projeto trabalha com uma variável, cada vez mais preocupante, que é o abandono da atividade pelo produtor de leite e a estagnação na produção gaúcha, que fez o Rio Grande do Sul despencar para quarto lugar no ranking nacional (segundo informações de agosto de 2024, divulgadas pela o Cepea/Esalq, atrás de Minas Gerais, Paraná e Santa Catarina).
O vice-presidente da Fetag/RS e coordenador da Câmara Setorial do Leite e Derivados da Secretaria da Agricultura, Pecuária, Produção Sustentável e Irrigação (Seapi), Eugênio Zanetti, confirma que a produção de leite no Rio Grande do Sul não cresce há pelo menos 12 anos.
Hoje, a média anual gira em torno dos 4,1 bilhões de litros, viabilizada por um número de produtores cada vez menor. O levantamento do setor, feito a cada dois anos pela Emater/RS-Ascar, e divulgado em 2023, durante a Expointer, apontava cerca de 33 mil produtores ainda na ativa, número este que já chegou a quase 100 mil.
“O maior problema que vemos é que a produção de leite sempre foi característica da pequena propriedade, e, em muitos casos, o principal sustento de muitas famílias da agricultura familiar. Essas famílias, quando precisam deixar a atividade por não ter mais condição de bancar os custos, têm muita dificuldade em migrar para outras culturas, como o milho e a soja.
Acaba sendo inviável por causa da área que têm disponível”, analisa Zanetti. Tal situação, afirma o dirigente, cria um problema social para os municípios. “O dinheiro do leite, por tradição, movimentava o consumo local, o que vai deixando de acontecer”, lamenta.
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O vice-presidente, entretanto, saúda como uma boa perspectiva para o setor a adoção da calculadora do leite, que vai remunerar o produtor com base não apenas na quantidade que oferece, mas, sim, considerando também a qualidade. Validada pelo Conselho Paritário Produtores/Indústrias de Leite do RS (Conseleite), a calculadora leva em conta o percentual de sólidos do leite – gordura e proteínas –, além da contagem bacteriana.
Modelo é promissor, mas pode haver dificuldades
Gadolando e Emater/RS-Ascar acreditam que contrato a ser proposto aos produtores pela Fetag/RS e a Lactalis é lógico para as cadeias de aves e suínos, porém, encontrará entraves nas características da bovinocultura de leite
Nas lides da produção leiteira desde a infância, o presidente da Associação dos Criadores de Gado Holandês do Rio Grande do Sul (Gadolando), Marcos Tang, lembra que o leite foi sempre uma boa forma do pequeno produtor sustentar sua família. Mas Tang reconhece que esse perfil foi mudando com o tempo graças a avanços da cadeia, como as instruções normativas do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) que introduziram novas regras sanitárias na última década e exigiram pesados investimentos para adequação. “A produção média das granjas que entregam leite para indústria era de 70 litros há 10 anos, hoje é de 400 litros. Sobreviveu quem se adequou à legislação e conseguiu aumentar sua escala”, avalia.
O dirigente entende que outras variáveis foram enfraquecendo a cadeia, como a dificuldade de comprar terras para incrementar a produção e a falta de sucessão rural, com muitos jovens desinteressados na atividade. A isso se somaram perdas com estiagem e enchentes, estimulando ainda mais o empreendedor a desistir. “O plano que está sendo apresentado pela Lactalis e a Fetag/RS, pode dar certo, sim. Mas é preciso olhar com cuidado para a cadeia leiteira, muito diferente das cadeias de aves e suínos”, adverte.
Marcos Tang observa que na cadeia de bovinos de leite o tempo é crucial para a rentabilidade. Ressalta que uma terneira que nasce hoje vai necessitar de pelo menos dois anos de criação, com alimentação adequada, para ter uma cria e então começar a produzir leite. “É bastante investimento. Não é como na cadeia de aves, que o produtor recebe um pintinho e 40 dias depois ele está pronto para o abate”, salienta Tang, relatando que uma vaca dá uma cria por ano, enquanto uma porca consegue parir 10 leitões de uma vez, cuja engorda também é curta.
Martin Schatchtenberg, assistente técnico de produção animal da Emater/RS-Ascar de Lajeado, concorda com a avaliação de Tang quanto às particularidades da cadeia leiteira. “Quem vai bancar os custos de criação de uma terneira por dois anos até ela dar lucro?”, questiona.
O veterinário participa da elaboração da pesquisa que é feita a cada dois anos pela Emater para traçar um perfil da bovinocultura de leite no Rio Grande do Sul.
Novo levantamento será feito entre maio e junho de 2025, para ser apresentado na Expointer do ano que vem. Schatchtenberg evita falar em números, mas admite que a tendência é de nova diminuição de produtores em relação aos 33 mil identificados em 2023. “Mas é bom salientar que essa tendência de encolhimento no número de produtores envolvidos é mundial, em alguns países bem mais do que nós”, comenta.
Martin informa ainda que a análise de dados demonstra que nem sempre o produtor que para de produzir leite o faz por problemas de remuneração. “Há produtores velhos que não têm filhos e param porque não têm mais energia para tocar o trabalho.
Os que trocam o leite por um aviário ou uma lavoura de soja. Os que decidem arrendar suas terras para um vizinho e viver deste valor”. O assistente técnico admite, porém, que aquele produtor que obtém menos de 300 litros de leite por dia tem poucas chances de sobreviver no setor, pois a sobra (ou lucro), é cada vez menor em relação ao custo.