Funciona assim: os preços sobem, por variáveis econômicas ou sazonais já bem conhecidas. Ou por lobby dos produtores mesmo, o que não é de se espantar em um país com moral tão flexível quanto o Brasil. A bola da vez é o preço internacional do milho, junto à entressafra. Com a disparada dos preços, o consumo cai e as ofertas voltam. Bom… pelo menos sempre foi assim, até que se popularizou de vez uma solução “jenial” nesta nova temporada. Fico imaginando os roteiristas deste filme planejando tudo: “a gente mistura leite bom com sobra (resto) da produção, dá um nome de batismo bem técnico para isso, mantém os preços do leite lá em cima para quem pode pagar (elitizando o consumo) e vende esse troço para quem não pode.
A gente ainda pode dizer que é nutritivo e que reduz o prejuízo ambiental”. Tudo verdade, exceto que a motivação não é nobre. Lançar soro de leite como efluente não tratado nunca foi preocupação para a maior parte dos produtores de leite, exceto pelo que querem fazer crer agora. Tampouco nunca foi prioridade tratar o soro para comercializá-lo como tal, com forte apelo nutritivo, dado que a prioridade sempre foi o resultado imediato e o “pessoal que mexe com leite” nunca foi muito chegado em investir em novas tecnologias. “Leite se vende sozinho”, dizem.
Daqui para a frente vai ser cada vez mais comum ver o composto lácteo ganhando espaço nas gôndolas. Sim! COMPOSTO LÁCTEO! Aquela misturinha mequetrefe, meio a meio, de leite e soro, feita para enganar o trouxa que não lê rótulo. O “trouxa”, neste caso, é a imensa maioria de nossa da população. Recebi ontem uma pesquisa da FIESP, de 2017, cujo dado principal sobre hábito de leitura dos rótulos no Brasil informa que 53% leem (somente 23% com regularidade). Destes, 70% se interessam pela data de validade. Em resumo, a mensagem ainda não chega. Sobretudo em um país com apenas 92% de alfabetizados, muitos dos quais analfabetos funcionais. “Ah… mas não é fraude”, dizem. De fato, não é. Está escrito na embalagem que não é leite. E, mesmo para quem a lê, é cansativo conviver com as letras pequenas. Somos o país que criou a “dúzia de dez” na comercialização de ovos. Reduzimos o rolo de papel higiênico de 40 para 30, a barra de chocolate para 90g e abro comentários para quem quiser lembrar de inúmeros outros exemplos. Reduz-se a quantidade, mantêm-se os preços. É a reduflação, novo verbete nacional.
O quão mais estamos sujeitos a perdas de padrão na indústria e expostos a alimentos inseguros? A busca obsessiva pela redução de custos, que hoje mistura soro ao leite, poderá fazer o que amanhã? Aceitar matérias-primas de qualidade inferior e procedência duvidosa, de fornecedores não homologados? Empregar profissionais menos qualificados pagando menos por isso? Recusar-se a oferecer capacitação adicional, limitando-a a treinamentos obrigatórios? Instalar equipamentos sem preocupações com acabamento sanitário ou com sua manutenção preventiva? Reduzir a frequência das sanitizações, a concentração de químicos ou seu tempo de contato?
Um dos motivos pelos quais me apaixonei pela filosofia é o livre pensar. Ele carrega consigo uma “quase irresponsabilidade” deliciosa, caracterizada por estimular o questionamento onde a doutrinação, os dogmas e o autoritarismo vêm fazendo enormes estragos. Assim, pensemos: queremos leite ou vamos aceitar todo o lixo da moral deturpada de chefes de cartéis, donos de oligopólios, coronéis do agronegócio e políticos, todos mancomunados em conluio? E quando bradarem também os extremistas religiosos, xenófobos, homofóbicos, racistas e afins? Hoje é composto lácteo. Amanhã pode ser a sua liberdade.