A segurança alimentar voltou ao centro do debate global — e o queijo, símbolo de tradição e prazer à mesa, tornou-se o protagonista de uma história que mistura ciência, negligência e crime.
Um estudo da Universidade de Cornell, publicado na revista Nature Medicine, acendeu o alerta ao mostrar que o vírus H5N1, causador da gripe aviária, pode sobreviver por até oito semanas em queijos produzidos com leite cru. A pesquisa desafia a crença de que o processo de maturação de 60 dias seria suficiente para eliminar riscos microbiológicos.
Os cientistas descobriram que o vírus permanece ativo em diferentes condições de acidez, sendo inativado apenas em pH abaixo de 5,0, o que sugere que nem todo queijo artesanal de leite cru é seguro por padrão. Embora a transmissão direta para humanos ainda seja rara, o dado preocupa autoridades sanitárias por abrir brechas para contaminações indiretas — especialmente em contextos de manipulação inadequada.
Mas enquanto laboratórios nos Estados Unidos investigam microrganismos invisíveis, o Brasil enfrenta um problema bem mais visível: a produção clandestina e o descuido com a higiene.
🚨 Do experimento à realidade: flagrante em Mato Grosso
Em Rosário Oeste (MT), a Polícia Civil e a Vigilância Sanitária deflagraram uma operação para combater o comércio irregular de leite e queijos. No local, encontraram vacas sendo ordenhadas de forma irregular, produtos armazenados em ambientes sujos, com moscas, medicamentos e equipamentos contaminados.
Um produtor de 45 anos foi preso em flagrante por crime contra as relações de consumo, conforme o artigo 7º da Lei nº 8.137/90. Todo o material foi descartado, e os equipamentos, apreendidos.
Segundo o delegado Mauro Cristiano Perassoli Filho, o caso expõe um risco duplo: à saúde pública, por possível contaminação, e à concorrência leal, já que produtores que seguem as normas sanitárias acabam prejudicados pela informalidade.
“Produtos vendidos fora das normas podem colocar vidas em risco e corroer a confiança do consumidor”, afirmou o delegado.
🧀 Entre tradição e risco: o dilema do leite cru
O debate sobre o leite cru é antigo — e sensível. No Brasil, há produtores artesanais que defendem o produto como expressão cultural e de terroir, enquanto outros o consideram um risco evitável.
A descoberta sobre o H5N1 reacende a polêmica. Se até em queijos de origem controlada o vírus sobrevive, o que dizer dos produtos fabricados sem fiscalização, em propriedades rurais sem infraestrutura adequada?
Autoridades sanitárias lembram que, embora o país possua regras para a produção artesanal — como o Selo Arte e as normas de inspeção estadual e municipal —, a fiscalização ainda é frágil. E a expansão do mercado informal, impulsionada por preços mais baixos e pela crença na “naturalidade” do leite cru, amplia o risco para o consumidor.
💡 O elo que falta: educação, fiscalização e transparência
Especialistas apontam que segurança alimentar não se faz apenas com leis, mas com educação técnica, rastreabilidade e comunicação clara.
Enquanto a ciência evolui e alerta para novos riscos biológicos, a realidade no campo mostra que parte da cadeia ainda ignora o básico: higiene, boas práticas e responsabilidade.
No fim das contas, o queijo contaminado e o leite clandestino são sintomas de um mesmo problema estrutural: a desconexão entre o discurso da qualidade e a prática da fiscalização.
E até que essa distância seja corrigida, o consumidor seguirá à mercê de um sistema que confunde o artesanal com o improvisado — e transforma um alimento nobre em potencial ameaça.
O alerta da Cornell e a prisão em Mato Grosso parecem histórias distantes, mas compõem a mesma narrativa: a da urgência em repensar como o Brasil e o mundo tratam a segurança alimentar.
Porque, no fim das contas, não é o queijo que está sob suspeita — é o sistema que deveria protegê-lo.






