O leite de foca acaba de ganhar destaque na ciência internacional ao ser reconhecido como o mais complexo já analisado entre os mamíferos.
A constatação, feita por uma equipe escocesa e sueca, derruba a antiga ideia de que o leite humano era o campeão absoluto em diversidade de açúcares. E tudo começou com uma missão nada trivial: extrair algumas colheres de leite de um animal de 180 quilos, armado de dentes afiados, garras respeitáveis e um humor nada colaborativo.
Patrick Pomeroy, biólogo da Unidade de Pesquisa de Mamíferos Marinhos da Universidade de St. Andrews, descreveu a experiência como “enfrentar uma massa compacta de músculos determinada a proteger seu único filhote”. Segundo ele, apenas com sedação e uma bomba de vácuo foi possível coletar pequenas amostras de cinco mães focas-cinzentas que habitam uma ilha na costa leste da Escócia.
O trabalho de campo foi essencial para permitir que Daniel Bojar, professor sênior da Universidade de Gotemburgo, na Suécia, se aprofundasse na composição do leite. Ele buscava desvendar a estrutura dos oligossacarídeos — açúcares mais longos e biologicamente estratégicos — presentes nessa espécie selvagem. Bojar descreve o leite como “um tipo de suor altamente sofisticado”, capaz de nutrir, proteger e preparar os filhotes para uma vida saudável.
As focas-cinzentas seguem um ciclo bem definido: todos os outonos, as fêmeas voltam às praias escocesas para parir e amamentar. Elas permanecem cerca de 18 dias sem retornar ao mar para caçar. Durante esse período, emagrecem drasticamente enquanto os filhotes, por outro lado, “inflam”, como descreve Pomeroy, tornando-se verdadeiras bolinhas de gordura capazes de enfrentar as águas geladas do Atlântico Norte.
A pesquisa que trouxe as respostas não é nova — pelo menos, não totalmente. As amostras foram coletadas originalmente em 2013, quando a equipe de Pomeroy investigava como o leite evoluía ao longo dos 18 dias de lactação. O material, armazenado desde então em um freezer da Universidade de Glasgow, foi revisitado em 2022, quando Bojar decidiu destrinchar sua estrutura química.
Com um litro de leite à disposição, os cientistas iniciaram uma investigação detalhada. Por meio de espectrometria de massa, criaram colisões moleculares estrategicamente controladas para observar fragmentos, permitindo reconstruir, peça por peça, a “árvore de açúcar” de cada oligossacarídeo.
O resultado espantou até os mais experientes: 332 tipos diferentes de oligossacarídeos foram identificados no leite de foca. Para comparação, o leite humano possui no máximo 250 — e em média cem. Além disso, as estruturas químicas encontradas nas focas se mostraram, muitas vezes, mais elaboradas do que as humanas.
A descoberta não significa que o leite de foca seja “melhor” que o humano, mas sim que evoluiu para atender necessidades específicas da espécie. As focas precisam garantir que seus filhotes acumulem energia rapidamente, desenvolvam um microbioma eficiente e tenham defesas contra vírus e bactérias antes de enfrentar a vida marinha.
Ainda assim, o resultado tem animado pesquisadores de outras áreas. Russ Hovey, professor de zootecnia da Universidade da Califórnia, em Davis, afirma que os achados podem ter impacto muito além da biologia marinha. Segundo ele, os açúcares complexos presentes no leite de foca podem inspirar novos avanços médicos, especialmente em imunologia e microbiologia.
Para Hovey, a descoberta reforça a importância de compreender como cada espécie utiliza a lactação para garantir a sobrevivência de seus filhotes. “O leite é muito mais complexo, valioso e diverso do que imaginamos”, afirma. A pesquisa destaca um ponto central: quanto mais entendemos a diversidade da natureza, mais percebemos o quanto ainda há para explorar — mesmo em algo tão cotidiano quanto o leite.
*Escrito para o eDairyNews, com informações de O Globo






