Em entrevista a um portal especializado, em dezembro de 2020, ele mencionava um dos vários picos no preço da muçarela no período da pandemia. A Alibra fornece para a indústria de alimentos e para o setor de food service: redes de fast-food, restaurantes, lanchonetes etc. Um dos produtos da empresa que tiveram maior destaque é a Mozzana, uma cobertura “sabor muçarela” feita para ser misturada ao queijo de verdade. A principal alegação de uso é reduzir custos.
Queijo mesmo, só o aroma. A Mozzana é composta por água, gordura vegetal, amido modificado, caseína, sal estabilizantes citrato de sódio e fosfato de sódio, regulador de acidez ácido cítrico conservador sorbato de potássio, corante betacaroteno e aroma idêntico ao natural de muçarela.
“A escassez de produtos lácteos, como o leite e a muçarela, trouxe muitas oportunidades de ampliar a nossa base de clientes por meio de produtos tais como: compostos lácteos (substitutos de leite), substitutos de queijos, coberturas cremosas sabor requeijão, gorduras em pós, creme de leite em pó, mousses em pó e chantilly em pó, dentre outros”, explicou Micheleto Junior.
Procuramos a Alibra para confirmar a lista de ingredientes da Mozzana e saber como esses produtos foram registrados, mas a empresa nos informou, por meio do seu departamento de marketing, que optaria por não responder. Essas informações não estão disponíveis no site da Alibra.
No Brasil, o registro, a regulamentação e a fiscalização de produtos de origem animal são atribuições compartilhadas entre o Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) e a Anvisa, que autoriza o uso de aditivos nestes produtos.
Derivados lácteos são registrados junto ao Mapa e divididos em três diferentes classificações: produtos lácteos, produtos lácteos compostos e misturas lácteas, conforme determina o Decreto 9.013/2017, que integra o Regulamento de Inspeção Industrial e Sanitária de Produtos de Origem Animal (Riispoa).
No caso dos produtos lácteos compostos ou das misturas lácteas, é necessário ter um percentual mínimo de mais de 50% de ingredientes lácteos no peso final.
Em um sistema alimentar que vem se fundamentando no casamento entre commodities agrícolas e produtos ultraprocessados, as corporações oferecem soluções para problemas que ela mesmo causa. E acabam gerando uma grande dor de cabeça para as autoridades regulatórias para lidar com essas “inovações”.
O caso da cobertura “sabor muçarela” —há ainda uma versão requeijão— talvez seja o mais emblemático da confusão gerada por esses produtos. A Mozzana não tem origem animal e também não se enquadra na definição de plant based. Mas este está longe de ser o único exemplo.
‘Deixamos de vender queijo para vender soluções’
A Daus, uma fabricante nacional também voltada para a indústria de alimentos e o setor de food service, deixou de ser uma empresa de lácteos quatro anos após sua fundação e passou a oferecer “soluções lácteas”. Uma delas é o chantilly, que, apesar de levar este nome no rótulo, não tem creme do leite em sua composição. O chantilly de verdade é resultado do creme —a parte gordurosa do leite, mais cara e escassa— batido com açúcar.
Em letras pequenas, na parte inferior da embalagem, a denominação oficial deste produto é creme vegetal “tipo” chantilly. É mais um exemplo de como a legislação brasileira para rotulagem pode ser permissiva.
O chantilly também é um caso exemplar da confusão causada por esses produtos. A grande maioria das versões prontas disponíveis nas prateleiras são, por sua composição, mais próximas de uma margarina e não levam leite algum.
Além do creme “tipo” chantilly, a Daus fabrica o creme culinário “tipo” creme de leite, composto por: leite desnatado, água, óleo vegetal de palma, soro de leite concentrado, amido modificado, antiespumante mono e diglicerídeos de ácidos graxos, 5 tipos de espessantes, 3 estabilizantes e aromatizante.
“O produto tem os mesmos resultados de um creme de leite tradicional, podendo ser utilizado em sobremesas, molhos, cafés e demais tipos de pratos e bebidas, quentes ou frios”, informa o fabricante.
Se não tem leite, que comam ultraprocessados
A grande vantagem desses produtos é o preço. Mas eles resolvem outros “problemas” para uma indústria que gosta de padronizar hábitos e impor os mesmos produtos mundo afora: ao tirar o leite altamente perecível da equação, os produtos têm maior durabilidade. Outro ganho é a facilidade na manipulação para o uso industrial ou profissional na preparação de outros alimentos ou receitas destinadas ao consumidor final.
O creme culinário, por exemplo, era vendido por R$ 10,99 o quilo em um e-commerce voltado para produtos de uso profissional. Um creme de leite original, composto por creme de leite e estabilizantes, custa mais que o dobro: entre R$ 8 e R$ 10 a lata com 300 g, nas principais redes de supermercados do Rio de Janeiro, de onde escrevo.
Se for fresco —o único tipo que bate chantilly— o preço pode ser bem maior: uma garrafa de 500 g não sai por menos de R$ 21.
No portfólio da empresa, tem destaque também a calda três leites (que leva apenas um tipo de leite —o desnatado, que é mais barato— além de açúcar, gordura vegetal e aditivos diversos) voltada para bolos e confeitaria em geral, e “soluções” para sorvetes e bebidas lácteas, incluindo uma linha de suplemento para crianças.
Segundo informa a Daus em seu site, entre os clientes estão grandes redes de fast-food, como Bob’s, KFC, Burguer King, Giraffas, Cacau Show e Oggi Sorvetes.
O diabo mora nos detalhes
Consultamos o Mapa para entender qual é o arcabouço regulatório que ampara a comercialização de produtos que não levam leite ou têm uma proporção pequena de matéria-prima láctea.
Por meio de nota, o ministério informou ser “terminantemente contrário” ao uso de alegações lácteas nesses produtos: “salientamos que o Mapa é terminantemente contrário, e já emitiu diversos pareceres sobre o tema, por entender que os rótulos destes produtos possuem grande potencial de engano ao consumidor”.
O órgão informou ter feito, de janeiro a julho deste ano, 576 auditorias de registro de produtos de origem animal pela Divisão de Registro de Produtos. “Dessas, 65% tiveram resultado conforme ou conforme com restrição e 35% tiveram resultado não conforme. No caso das auditorias não conformes, as empresas são autuadas e intimadas para correção ou cancelamento do registro”. O Mapa não informou quais são as empresas autuadas.
Mesmo tendo uma legislação considerada robusta no caso de produtos de origem animal, as regras brasileiras para a comercialização desses alimentos têm brechas que permitem que fabricantes dos chamados alternativos lácteos se amparem no uso de denominações como “cobertura”, “molho” ou “preparado” sabor queijo ou outro produto lácteo.
“Os rótulos desses produtos elaborados para pizzas, como ‘cobertura sabor muçarela’, ‘cobertura sabor requeijão’ jamais poderiam utilizar qualquer forma de representação que indique ou sugira ou que faça alusão a produtos lácteos, muito menos dizendo poder substituí-los”, acrescentou o ministério em nota enviada ao Joio.
Mas o diabo mora mesmo é nos detalhes. “Entretanto, quando se trata de aromatizantes, seguindo a legislação vigente, pode ser utilizado o termo ‘sabor muçarela’, ‘sabor requeijão’ etc., se utilizarem aromatizantes com essa designação”, ponderou o Mapa.
Nesse caso, são produtos que têm menos de 50% de ingrediente lácteo ou não nada de leite em sua composição, e passam a ser registrados e fiscalizados apenas pela Anvisa.
É o caso do creme “tipo” chantilly e do creme culinário. “Os dois produtos são isentos de registro e têm o comunicado de início de fabricação junto à Anvisa, usando a categoria alimentos prontos para o consumo e mistura para o preparo de alimentos”, informou, em nota, a fabricante Daus.
Além disso, o controle sobre a rotulagem não é tão rigoroso no food service quando comparado aos produtos que vão direto para a prateleira dos supermercados. Neste caso, o consumidor final tem acesso, ainda que em letras miúdas, à lista de ingredientes.
Mas quem compra um lanche supostamente com queijo ou uma sobremesa que deveria ser láctea muito provavelmente não sabe o que está ingerindo.
A Secretaria Nacional do Consumidor, órgão do Ministério da Justiça, informou não ter recebido qualquer solicitação formal da Anvisa ou do Mapa a respeito desses produtos.
Schreiber Foods, uma ilustre desconhecida
Navegando neste universo das soluções lácteas, a Schreiber Foods parece um caso à parte por ser uma gigante desconhecida que habita o reino dos queijos. Aliás, queijos, não: “preparados alimentícios” sabor (algum tipo de queijo). Presente nos cinco continentes e com cerca de 9 mil funcionários, a fabricante de origem estadunidense começou como uma empresa pequena de laticínios e se globalizou na década de 1970, ao tornar-se fornecedora de queijos processados para o McDonald’s. No Brasil, está instalada no Paraná, estado que detém grandes bacias leiteiras.
Ao mercado nacional, a Schreiber Foods fornece ao menos três tipos de “preparado sabor queijo” nas modalidades prato, cheddar e muçarela, produtos feitos à base de água, gordura vegetal, queijo (não especificado qual), leite e muitos, mas muitos aditivos. Não foi possível saber qual é a composição exata desses produtos, que são vendidos apenas para o setor de food service e para a indústria de alimentos. A fabricante oferece também molho culinário sabor requeijão e molho lácteo cremoso sabor cheddar.
Não conseguimos contato pelo telefone informado no site da empresa, todo em inglês. Também tentamos, sem sucesso, contato com funcionários da unidade brasileira via LinkedIn. A Schreiber Foods não respondeu ao pedido de esclarecimentos enviado pela nossa reportagem, por e-mail, para a matriz americana.
No meio do caminho, havia os aditivos
As normas brasileiras para regularização de alimentos são tão complexas que existem escritórios de advocacia especializados apenas na prestação desse serviço. Entender a regulamentação dos produtos não foi uma tarefa fácil. Foram 22 trocas de mensagens por e-mail ao longo de dois meses apenas com a Anvisa. A agência optou por não nos conceder uma entrevista.
E assim seguimos com mais perguntas do que respostas. Uma delas é: como as misturas lácteas, previstas como uma categoria de derivado lácteo desde 2017, não foram regulamentadas? A outra é: como esses produtos são registrados e comercializados usando aditivos não autorizados para esse fim, mesmo com o conhecimento das autoridades regulatórias?
Ao se tornarem ultraprocessados, todos esses subprodutos —com base láctea ou apenas alegação láctea— levarão aditivos diversos. Esses aditivos devem constar em uma lista positiva, ou seja, devem ter autorização da Anvisa para uso conforme a finalidade e o tipo de produto a que se destinam.
Um molho sabor qualquer coisa, emulsionado ou não, pode, segundo a Anvisa, conter mais de 200 tipos de aditivos para ao menos dez funções distintas. Já as regras para o requeijão são mais restritas, com 66 aditivos permitidos em 6 funções. O mesmo ocorre com o creme tipo chantilly mencionado anteriormente, enquadrado na mesma categoria que a margarina: pode levar 216 aditivos diferentes em 11 funções.
Não que a autorização isente os aditivos de problemas à saúde de quem consome. Já falamos no Joio do caso dos nitritos e nitratos em embutidos e do dióxido de titânio, utilizado em diversos ultraprocessados. Ainda assim, atender ao que determina a legislação é —ou deveria ser— o mínimo que se espera em uma indústria tão robusta como a de alimentos no Brasil.
Produtos irregulares seguem no comércio
Em dezembro de 2022, a Gerência Geral de Alimentos (GGALI) da Anvisa convocou uma reunião com entidades que representam o setor de lácteos e fabricantes de aditivos para falar sobre o tema. A justificativa apresentada foram questionamentos que a agência vem recebendo sobre a ampliação da oferta de misturas e derivados lácteos, em meio ao aumento no preço do leite e de novos produtos feitos à base de soro.
As entidades setoriais foram informadas pela Anvisa de que “não têm respaldo nenhum na regulamentação que permita o uso de aditivos” e que as dúvidas também estão vindo das vigilâncias sanitárias estaduais e de empresas. Essas informações constam em atas obtidas pelo Joio via Lei de Acesso à Informação.
Participaram da reunião a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia), a Associação Brasileira da Indústria e Comércio de Ingredientes e Aditivos para Alimentos (Abiam), a Associação Brasileira das Indústrias de Queijo (Abiq) e a Associação Brasileira de Laticínios (Viva Lácteos) —essa, representante de laticínios convencionais e empresas de “soluções lácteas”, como as citadas nesta reportagem.
Procuramos as quatro entidades. A Viva Lácteos limitou-se a dizer que o tema “está sendo tratado com a Anvisa”.
A Abiq informou que acompanha a discussão. “Estamos acompanhando a movimentação desses produtos alternativos. Reforçamos nossa a posição de que haja correta e clara informação nos rótulos, mas no momento estamos aguardando a posição da Anvisa”.
A Abia nos informou que o assunto está sendo tratado pelas entidades setoriais.
A Abiam não respondeu nossa solicitação até o fechamento deste texto.
Em nova reunião, em março de 2023, as entidades setoriais apresentaram um levantamento em que identificaram ao menos sete categorias de produtos cujos aditivos carecem de regularização: mistura de queijos processados ou fundidos e gordura vegetal; mistura láctea condensada com outros ingredientes; mistura de creme de leite com (?); mistura de bebida láctea; mistura de composto lácteo em pó; mistura de creme de chantilly; e mistura de molho lácteo.
A Anvisa determina às entidades que regularizem a situação solicitando avaliação de inclusão ou extensão de uso dos aditivos para esses produtos e voltou a destacar que “os produtos no mercado estão irregulares (…) e que, quando consultada, a GGALI vai encaminhar para a área de fiscalização”.
Para o MAPA, os fabricantes podem utilizar os mesmos aditivos das categorias que tentam mimetizar. “No caso de uma mistura de creme de leite e soro de leite, permite-se o uso de aditivos previstos para creme de leite, tendo em vista o creme de leite estar entre os ingredientes utilizados. No caso de uma mistura condensada de leite e soro de leite, não são admitidos aditivos, já que não existem aditivos previstos para o leite condensado”, explica a nota.
Mas quem regulamenta e fiscaliza o uso de aditivos é a Anvisa. O MAPA foi informado formalmente da situação em dezembro de 2022 em um ofício sobre o tema.
“A Anvisa tem recebido questionamentos tanto do setor produtivo, quanto da vigilância sanitária sobre o uso de aditivos alimentares nestes produtos. Nos questionamentos recebidos, estamos informando que a legislação sanitária brasileira não permite o uso de aditivos nestes produtos. Considerando o exposto, solicitamos esclarecimentos se estes produtos estão sendo regularizados junto ao ministério e, caso estejam, quais referências estão sendo usadas como base para a regularização”, informa o documento, enviado ao Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Animal.
Perguntamos se houve resposta ao ofício e, novamente, esbarramos na confusão regulatória que envolve esses produtos.
“O ofício […] foi respondido à Anvisa no mês de janeiro de 2023. Em resumo, informamos que, como a legislação brasileira de aditivos é positiva, somente tem sido permitido aditivos quando previstos em legislação nacional. E que a orientação que temos passado, quando não existe previsão de aditivos para o produto que se pretende fabricar, é sempre de seguir o fluxo acordado entre MAPA e Anvisa para aprovação de novos aditivos, informou o ministério em nota enviada ao Joio.
O caso da mistura láctea condensada é ainda mais surpreendente. Este produto ganhou grande evidência no ano passado em discussões nas redes sociais, na imprensa e entre os órgãos de defesa do consumidor diante da confusão gerada por rótulos muito parecidos para produtos absolutamente diferentes.
Tanto o MAPA, quanto a Anvisa, neste caso, concordam que o uso de aditivos neste produto é irregular, já que não existem aditivos autorizados para leite condensado. Ainda assim, as misturas condensadas seguem disponíveis nas prateleiras de qualquer supermercado.
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