A cadeia leiteira do Brasil busca para 2023 a estabilidade que não vivencia há dois anos. De acordo com análise da Embrapa, é possível que o setor registre 1% ou 2% de aumento produtivo até o final do ano. O Rabobank é mais otimista, e prevê o mesmo crescimento ainda no primeiro semestre.
O Brasil vem de um ano no qual a captação de leite caiu 5%, segundo IBGE, registrando 23,85 bilhões de litros em 2022, contra 25,1 bilhões em 2021.
Para reverter esse cenário, especialistas apontam que há uma série de fatores que precisam ser considerados, como altos custos produtivos, preços competitivos dos países vizinhos, aumento da produtividade no campo e redução do consumo.
“O mercado brasileiro busca um novo equilíbrio entre oferta e demanda. Incertezas globais e clima influenciaram a produção no último ano, intensificando dificuldades pré-existentes. A retomada do setor enfrentará desafios dentro e fora da porteira”, avalia Guilherme Jank, analista responsável pela área de lácteos da Datagro.
Custos operacionais
De acordo com o Centro de Inteligência da Embrapa, o Índice de Custos de Produção do Leite (ICPLeite) registrou crescimento de 62% nos últimos quatro anos.
O aumento, segundo Glauco Rodrigues Carvalho, pesquisador da Embrapa Gado de Leite, comprometeu toda a cadeira leiteira no Brasil, e fez a produção cair. “Os valores esmagaram as margens de lucro nos últimos dois anos e levaram inúmeros pequenos produtores a trocarem de ramo de atuação”, afirma.
A expectativa para conter o avanço dos custos, segundo especialistas, é a safra brasileira recorde de grãos no ciclo 22/23, que deve melhorar a relação de troca entre leite, milho e soja.
Relatório da Conab (Companhia Nacional de Abastecimento) relativo ao mês de fevereiro já apontou que a relação de troca no mês melhorou para os produtores de leite – a primeira melhoria desde agosto de 2022.
No Paraná, a relação leite/milho está 56% superior em comparação ao mesmo período de 2022 e a relação leite/soja está 29,5% melhor na mesma comparação. Em São Paulo, a relação leite/milho estava cerca de 59% maior do que em fevereiro do ano passado.
De acordo com Mariana Grigol, analista do setor lácteo do Cepea, o Custo Operacional Efetivo (COE) da pecuária leiteira caiu 0,61% em fevereiro, considerando-se a “média Brasil” (BA, GO, MG, SC, PR e SP).
“Essa redução ocorreu principalmente devido às menores despesas com determinadas categorias de insumos – como suplementação mineral, adubos e corretivos – e operações mecanizadas”, informa.
Considerando-se o primeiro bimestre de 2023, houve estabilidade nos custos, que registraram leve alta de 0,07%, de acordo com o Cepea. Dentre as categorias que se desvalorizaram, destacam-se os adubos, medicamentos, suplementos minerais e operações mecanizadas (em função da desvalorização do diesel).
— Foto: Embrapa
Análise da Embrapa aponta que, considerando o período entre março de 2022 e fevereiro de 2023, o custo de produção reduziu 2,4%.
Preços ao produtor maiores frente à oferta reduzida ajudam a impulsionar as margens. Os valores têm se sustentado elevados desde meados de 2021, apresentando sinais de retomada para o setor, de acordo com o Cepea.
O preço do leite captado em janeiro subiu 5% na “média Brasil” líquida do Cepea, chegando a R$ 2,6619/litro, sendo 17,6% maior que o registrado em janeiro do ano passado, em termos reais (os valores foram deflacionados pelo IPCA de janeiro/22).
Sai La Ninã, chega o El Niño
Responsável por mudanças climáticas que influenciaram a produção agropecuária no Brasil nos últimos três anos, o La Niña impactou a produção de leite no Brasil no primeiro bimestre.
Em janeiro e fevereiro, o setor teve alta atípica de preço pago ao produtor para o período, em função da estiagem intensa em regiões produtoras no Sul e Sudeste, segundo o Cepea.
“A sustentação de preços no primeiro bimestre aconteceu na contramão da série histórica”, aponta Mariana Grigol. “Historicamente, trata-se de um período marcado por queda nas cotações, devido ao incremento sazonal da produção, o que não ocorreu”, completa.
À medida que o período de declínio sazonal da produção se aproxima, com a mudança de clima, os preços tendem a se manter mais elevados e pressionar reajustes na indústria e nos canais de distribuição, de acordo com Mariana.
Este ano deve ser marcado ainda pela transição de fenômenos climáticos. Agências de previsão climática indicam que entre junho e agosto o La Niña deve dar lugar ao El Niño.
“Frente a essas mudanças, um planejamento bem-feito e a execução de um bom manejo voltado para as especificidades dessa época também podem auxiliar a diminuir esses impactos, como, por exemplo, a antecipação de negociações de insumos, tanto para a agricultura quanto para a pecuária”, destaca análise do Milk Monitor.
Esperança no RS
Os produtores gaúchos foram os mais afetados pela estiagem nesta safra – a terceira seguida marcada pela escassez de chuva.
A safra de milho, bastante prejudicada, não gerou silagem adequada para o gado, fazendo com que os produtores necessitassem de complementação para a alimentação do rebanho.
Agora, a chegada do outono e a proximidade do inverno trazem esperança para a recuperação dos pastos. “É hora de tocar para frente o que sobrou de produtores e rebanho”, diz o presidente da Associação dos Criadores de Gado Holandês do Rio Grande do Sul (Gadolando), Marcos Tang, fazendo referência aos que desistiram da atividade rural em razão dos altos custos.
“Tivemos, sem dúvidas, uma redução importante nos últimos anos no número de produtores de leite, no país e, principalmente, no Rio Grande do Sul”, complementa.
Tang aconselha que os produtores aproveitem a volta das chuvas para formar suas pastagens. “E otimizar ao máximo o uso das mesmas, uma vez que a silagem é pouca e temos que ter esta saída”, recomenda.
De acordo com análise da Embrapa, é possível que o setor registre 1% ou 2% de aumento produtivo até o final do ano — Foto: Divulgação/Castrolanda
Queda no consumo é desafio
As vendas de leite das integrantes da Associação Brasileira da Indústria de Lácteos Longa Vida (ABLV) caíram 5% no ano passado em comparação a 2021, chegando a 6,4 bilhões de litros, segundo uma estimativa prévia. E para reverter esse cenário, as indústrias trabalham agora numa ofensiva de comunicação.
Dados da Scanntech mostram que o volume de vendas de lácteos caiu 7% em janeiro e mais 8% em fevereiro de 2023, frente ao mesmo período de 2022. Felippe Serigati, economista da FGV Agro, comenta que o consumidor, com poder de compra reduzido, não consegue absorver a elevação de preços do setor.
“O consumo de leite e derivados é fortemente impactado pelo desempenho da economia. Nível de emprego e renda, taxa de juros e PIB influenciam diretamente o comportamento do consumidor”, pontua ele. Der acordo com Serigati, incertezas ficais e ambiente internacional incerto também influenciam esse cenário.
“Considerando uma inflação de 22,71% para a cesta de lácteos no IPCA (Índice de Preço ao Consumidor Amplo) nos últimos 12 meses e 9,84% para o setor de alimentos e bebidas, no mesmo período em que o reajuste de salários ficou próximo da inflação (6%), o poder de compra do consumidor sofreu uma queda significativa nos últimos 12 meses”, comenta.
Menos produtores e mais produtividade
Especialistas apontam que é uma tendência no setor mudanças na escala de produção das fazendas. Enquanto os desafios do setor levam à redução do número de produtores, aqueles que se mantêm no ramo avançam em produtividade.
Levantamento da Embrapa aponta que nas grandes bacias leiteiras do país a produtividade está equiparada a de países que são referência em captação leiteira (veja quadros abaixo).
“Vale ressaltar que a produtividade média do Brasil ainda é baixa, em torno de 2.200 litros/ano/vaca”, pondera Glauco Rodrigues Carvalho, da Embrapa Gado de Leite. “Neste cenário de mudanças, a busca de eficiência, entretanto, deve ser uma tendência”.
Produtividade média por vaca
Países de referência | Litros/ano |
Estados Unidos | 10.800 |
Alemanha | 8.400 |
França | 7.200 |
Produtividade média por vaca
Municípios que se destacam no Brasil | Litros/ano |
Araras (SP) | 10.300 |
Carambeí (PR) | 9.900 |
Castro (PR) | 8.400 |
Boas práticas de gestão, incluindo responsabilidade ambiental, estão entre os fatores apontados por especialistas como requisitos indispensáveis à sobrevivência no agronegócio do leite.
“Melhorias tecnológicas, aprimoramento genético e investimento em gestão estão entre os diferenciais daqueles que avançam, em todas as regiões brasileiras”, avalia Guilherme Souza Dias, assessor técnico do projeto Campo Futuro, da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA).
“É fundamental uma visão estratégica do negócio, com profissionalização do sistema de gestão, métricas de desempenho, análise de custos e mercado, para planejamento preciso a médio e longo prazos, já que a tendência é que as margens continuem estreitas”, afirma Dias.
“Escalonar a produção é um fator importante para redução do custo unitário do leite produzido, mas não é o único determinante para o crescimento”, completa.
Eficiência econômica e zootécnica
A experiência de Lisiane Czech, produtora de leite do município de Teixeira Soares (PR), leva essa perspectiva para dentro da porteira, na captação de 5 mil litros de leite/dia em sua propriedade.
“Investimos em eficiência econômica e zootécnica, por meio de capacitação dos profissionais, além de dar atenção à gestão de pessoas. O resultado é notório. Tudo é calculado e, assim, evitamos qualquer desperdício. Algo fundamental num mercado de margens estreitas”, diz.
Lisiane destaca ainda o papel da cooperativa Frisia, da qual é associada, na evolução do negócio. “Há orientação e fomento à cadeia produtiva, que nos transmite segurança nas tomadas de decisão”, afirma.
Andrés Padilla, do Rabobank, avalia que gargalos logísticos ainda impactam o setor. “Melhorias no processo de captação, armazenamento e distribuição precisam ser efetuadas para reduzir as perdas além da porteira”, sinaliza. “A capacidade de aproveitamento nas propriedades brasileiras é reduzida em função desses fatores”, completa.
A agenda ambiental também deve estar no radar do agronegócio do leite, comenta Luis Gustavo Pereira, pesquisador da Embrapa Gado de Leite. “O consumidor está atento à responsabilidade ambiental da cadeia produtiva”, aponta.
De acordo com o pesquisador, já existem indicadores no país que contabilizam a pegada de carbono das etapas de produção do leite, considerando a realidade brasileira. “Temos trabalhos em andamento tanto para redução da emissão de carbono como para neutralização do que é emitido. A procura por parte dos produtores tem aumentado gradativamente”.
As vendas de leite das integrantes da Associação Brasileira da Indústria de Lácteos Longa Vida (ABLV) caíram 5% no ano passado em comparação a 2021 — Foto: JM Alvarenga
Pool de leite estimula produção
As cooperativas Castrolanda, Frísia e Capal se uniram para potencializar o comércio do leite no Paraná, em atividade que denominaram como “intercooperativismo”, e celebram os resultados.
Juntas, elas criaram o “Pool do Leite”, uma organização para tomada de decisões estratégicas em conjunto. “O Pool faz a mediação entre os produtores e a indústria e, principalmente, organiza os processos de pagamento por volume e qualidade e a logística de coleta de leite nas propriedades, ganhando em escala e negociações”, conta Eduardo Ribas, gerente executivo de negócios da Castrolanda.
Por dia, o Pool é responsável pela captação de mais de 2,7 milhões de litros de leite, coleta que envolve mais de 100 veículos, 80 rotas diárias, 45 municípios e 800 produtores.
Eduardo Ribas conta que a iniciativa tem sido positiva para os produtores da Castrolanda. “O rebanho dos nossos cooperados aumenta ano a ano, assim como a produção por animal/dia. A soma entre aumento dos rebanhos e da produção por animal faz com que a produção de leite da Castrolanda aumente em uma taxa média de 10% ao ano nos últimos 10 anos, o que é equivalente a dobrar a produção a cada 7, 8 anos”, afirma.
“Podemos trazer como exemplo uma propriedade que, em 2010, produzia 15 mil litros de leite por dia e estava limitada no crescimento devido à produção de volumoso. Após 10 anos, com as novas tecnologias, novos híbridos, eficiência de transporte de alimentos e genética dos animais, a propriedade tem uma produção de 25 mil litros por dia na mesma área”, informa Ribas.
Hoje, a Castrolanda conta com 400 cooperados da pecuária leiteira, que possuem aproximadamente 45 mil vacas em lactação. Em 2022, a produção de leite da cooperativa foi de 472 milhões de litros.
Infraestrutura e sustentabilidade
A Cooperativa Witmarsum, com sede em Palmeira (PR), atua na produção de grãos e no beneficiamento de leite e queijos finos. A empresa cresceu 25% no ano passado e mantém expectativas positivas para 2023. “Investimos em infraestrutura, tecnologia e sustentabilidade para continuar nessa esteira de crescimento”, relata o diretor de Operações da cooperativa, Rafael Wollmann.
O dirigente ressalta, entretanto, que ainda que o mercado da pecuária leiteira se prepare para grandes desafios a longo prazo, é fundamental que o setor dialogue com o poder público e outras partes interessadas para buscar incentivos para a produção.
“Nós, como cooperativa, trabalhamos para que nossos produtores se sintam estimulados a buscar novos investimentos e alternativas com o objetivo de aumentar qualidade e produtividade. E, para isso, é preciso pensar em explorar novos mercados, diversificar a produção e nos fortalecer como marca”, destaca.
Aumento da importação
A queda na produção somada à alta do preço pago ao produtor refletiu no aumento de importação de lácteos. As indústrias têm buscado matéria-prima na Argentina e Uruguai, que oferecem preços atrativos.
“O cenário de produção doméstica, somado aos preços atuais do leite no Brasil e a taxa de câmbio deixam o leite importado competitivo”, avalia Guilherme Jank, da Datagro. “Essa movimentação contribui para a pressão baixista dos preços”, complementa.
Dados da Secex (Secretaria de Comércio Exterior) indicam que em fevereiro foram importados 156,5 milhões de litros em equivalente leite, uma quantidade 261,40% maior que a registrada em fevereiro de 2022. Levando em conta o valor em dólar, no primeiro bimestre de 2023 as importações foram 214% superiores a 2022.
Projeção da Datagro aponta que as importações dentro do Mercosul devem continuar crescendo no segundo trimestre do ano, motivadas pelos preços mais baixos.
“Redução das importações chinesas, desaceleração econômica global, com inflação elevada e juros altos, somados à recuperação moderada da oferta na Europa e nos EUA, devem continuar limitando os preços das principais commodities lácteas no segundo trimestre de 2023, pressionando o mercado”, pontua Jank.
Diante do cenário doméstico e câmbio, as exportações ficaram comprometidas. Mesmo com aumento de exportações na casa dos 20% entre janeiro e fevereiro, chegando a 6,9 milhões de litros em equivalente leite, houve recuo de fortes 69,6% em relação ao mesmo período do ano passado, segundo a Secex.
No primeiro bimestre, as exportações totalizaram 12,7 milhões de litros, 67% aquém do volume enviado no mesmo período de 2022.
Defesa comercial
No final de março, representantes da CNA participaram da primeira reunião de 2023 da Câmara Setorial da Cadeia Produtiva do Leite e Derivados do Ministério da Agricultura, em Brasília, para debater, entre outros pontos, o atual cenário da atividade e ações de defesa comercial.
De acordo com nota divulgada pela CNA, foram apresentadas questões relativas às tarifas de importação praticadas no setor lácteo no Mercosul e à necessidade de proteção do mercado nacional.
“O tema de destaque do evento foi a defesa comercial, campo de atuação da Confederação desde a criação da Comissão Nacional. Com a iminência da queda das tarifas de importação de 11 produtos lácteos de 28% para níveis entre 16% e 14% em 31 de dezembro desse ano, a Confederação voltou a capitanear os esforços para resguardar o setor de importações desleais”, diz a nota.
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