O Brasil pode encerrar 2025 com mais de 2,14 bilhões de litros equivalentes de leite importados, um recorde histórico que escancara a fragilidade da cadeia nacional diante da enxurrada de produtos do Mercosul.
Segundo o Cepea/Esalq-USP, o preço médio pago ao produtor deve cair para R$ 2,18 por litro em dezembro, com muitos recebendo bem menos que isso — valores insuficientes até para cobrir os custos de produção.
A crise, que já é considerada uma das piores da última década, levou o tema do contrato futuro de leite ao centro do debate.
Durante audiência pública na Câmara dos Deputados, realizada pela Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural, parlamentares e lideranças do agronegócio discutiram o instrumento como uma alternativa concreta para mitigar riscos e devolver previsibilidade ao setor.
📉 Importações em alta, consumo em queda
O aumento das importações, o crescimento da produção interna e a retração no consumo doméstico formam um tripé perverso para o produtor.
De acordo com o Cepea, o preço do leite cru caiu cerca de 20% em um ano, refletindo uma pressão direta da entrada de leite em pó da Argentina e do Uruguai — países que operam com custos mais baixos e câmbio favorável.
Em agosto, o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) decidiu não aplicar medidas antidumping contra o leite em pó desses países, mesmo após denúncias de vendas abaixo do custo de produção.
A Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) apresentou novas evidências e pediu a reabertura da investigação, cujo resultado já foi adiado duas vezes.
“O antidumping é o único antídoto possível no curto prazo”, afirmou Guilherme Dias, assessor técnico da CNA. Segundo ele, as importações deste ano estão 88% acima da média entre 2014 e 2024, o que “cria um ambiente insustentável para o produtor brasileiro”.
💬 Parlamentares pressionam o governo
O presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), deputado Pedro Lupion, classificou o volume importado como “injustificável” e criticou o atraso do governo.
“Está claro, no dia a dia da produção, o que está acontecendo com as propriedades de leite no país. Não há justificativa técnica para adiar o antidumping”, afirmou.
O deputado Valdir Cobalchini (MDB-SC), que propôs a audiência, reforçou o argumento de que as decisões do governo “criam concorrência desleal” e “abrem uma brecha perigosa” na defesa do produtor nacional.
Para ele, além de medidas emergenciais, é preciso adotar instrumentos modernos de proteção, como o mercado futuro de leite.
📊 Leite na B3: sonho ou solução?
A proposta da CNA de criar um contrato futuro de leite na B3 não é nova, mas ganha força no momento em que o setor busca previsibilidade em meio ao caos.
O modelo permitiria que produtores e indústrias fixassem preços com antecedência, reduzindo riscos e garantindo renda mínima — mecanismo já consolidado em mercados como boi gordo, soja, milho, café e etanol.
Um grupo de trabalho com cooperativas, laticínios e consultorias vem analisando as correlações entre o preço do leite ao produtor e o dos derivados como UHT, leite em pó e muçarela.
Os resultados mostram alta convergência, o que reforça a viabilidade técnica do contrato.
Se o projeto avançar, a próxima etapa será definir quem calculará o indicador de liquidação. Entre os candidatos estão UFPR, Datagro, GV/Scot Consultoria e o próprio Cepea.
🌱 Fundo do leite: a proposta estrutural
Enquanto o mercado discute medidas imediatas, a Embrapa Gado de Leite propõe pensar além do curto prazo.
O chefe-geral da unidade, José Luiz Bellini Leite, defende a criação de um Fundo do Leite, financiado por uma taxa sobre as importações, para sustentar investimentos contínuos em pesquisa, inovação e capacitação.
Segundo Bellini, o fundo poderia ser gerido pela iniciativa privada, destinando recursos para P&D, transferência de tecnologia e formação técnica.
“Se não criarmos estruturas duradouras, estaremos daqui a um ou dois anos discutindo a mesma crise”, alertou.
🧩 Um setor à espera de previsibilidade
A proposta de um contrato futuro não é uma panaceia, mas representa um passo em direção à profissionalização do mercado lácteo brasileiro.
Sem instrumentos de proteção e com medidas antidumping emperradas, o produtor continua vulnerável às variações externas e às decisões políticas.
O desafio é duplo: proteger o produtor no curto prazo e criar as bases para uma cadeia sustentável no longo prazo.
Por enquanto, o que o setor tem de concreto é uma certeza amarga: o leite brasileiro segue barato demais para quem produz — e caro demais para quem consome.
*Escrito para o eDairyNews, com informações de Agro Estadão






