A catástrofe climática não é iminente: ela já chegou. O que se pode fazer agora é trabalhar para que a curva de aquecimento global projetada pelo IPCC (Painel Intergovernamental Sobre Mudanças Climáticas) seja menos aguda.
Enquanto os líderes mundiais se reúnem (a partir do dia 31) para a conferência COP26 em Glasgow, na Escócia, aqui no Brasil — mais precisamente em Itirapina, no interior de São Paulo –, Luís Fernando Laranja faz a sua parte. Ele é sócio-fundador da NoCarbon, marca de leite orgânico carbono zero.
O Brasil tem 218 milhões de bois e vacas, segundo o IBGE. É mais gado do que gente. E o uso intensivo da terra para a pecuária tem tudo a ver com o aquecimento global. Segundo Luís:
“A única solução que nos resta é reformar o sistema por dentro. Temos absoluta convicção de que as proteínas animais têm uma pegada ecológica maior do que outros alimentos”
Para essa reforma acontecer, Luís acredita que as operações agropecuárias precisam ser sustentadas por três pilares: bem-estar animal, carbono zero e uso responsável dos recursos naturais.
É nesse tripé que a NoCarbon se apoia para levar à frente a sua missão. “Não queríamos criar [apenas] uma marca de leite, mas um movimento sobre um jeito diferente de produzir alimento para ajudar a criar consciência.”
UMA PARCERIA COM A FAZENDA DA TOCA PERMITIU AGILIZAR A TRANSIÇÃO PARA A PRODUÇÃO ORGÂNICA
Veterinário com pós-doutorado em Animal Science pela Universidade do Kentucky, nos Estados Unidos, Luís traz na bagagem uma década de experiência acadêmica ligada à Universidade de São Paulo (USP), e consultorias para indústrias como Nestlé, Parmalat e Itambé.
Nesse meio tempo, empreendeu a Ouro Verde Amazônia, uma processadora de castanha do Pará que usava matéria-prima de comunidades indígenas (e foi vendida em 2013); a Kaeté Investimentos, gestora de fundos de impacto; e a Caaporã Agrosilvopastoril, que produz proteína animal sem derrubar a floresta.
Desde 2010, ele também é sócio da Fazenda Guaraci. Há quatro anos, a propriedade deu início à transição para tornar sua produção de leite orgânica e carbono zero.
Para agilizar o processo, Luís e os sócios — Osvaldo Stella Martins, Henrique de Azevedo Ferreira França e Valmir Gabriel Ortega — optaram por um contrato com a Fazenda da Toca. Assim, puderam levar o gado para dentro da propriedade (que já tem certificação orgânica) e economizar tempo de conversão.
“Normalmente, é preciso dois anos para tornar o solo orgânico e seis meses para converter os animais. Só precisamos, de seis meses porque trouxemos os animais para um lugar que já era orgânico certificado”
Pela parceria, a Fazenda da Toca fica com uma parte da produção comercializada pela NoCarbon. Além do leite integral e desnatado, o portfólio da marca inclui leite semidesnatado zero lactose, coalhada, kefir, creme de leite e os queijos minas frescal, minas padrão e ricota.
O BEM-ESTAR ANIMAL PRECISA SER GARANTIDO COM ATENÇÃO AOS MÍNIMOS DETALHES
Lembra daqueles três pilares? A NoCarbon já nasceu com esse tripé bem sólido.
O bem-estar das 400 vacas da Fazenda Guaraci é certificado pela Certified Humane Brasil. Segundo Luís, é preciso cumprir uma série de regras, como não criar os bezerros em cercados individuais, não usar nenhum tipo de promotor de crescimento e até manter as instalações livres de degraus e quinas para que as vacas não corram o risco de se machucar.
Outra exigência é manter o portão de acesso à pastagem aberto por, no mínimo, 4 horas por dia. “No nosso caso, esse portão fica aberto 24 horas por dia”, diz Luís.
No pilar Carbono Zero, a NoCarbon realiza o plantio de árvores para compensar todas as emissões de gases de efeito estufa decorrentes da operação, da criação dos animais à entrega do produto embalado para os pontos de venda. A neutralidade do carbono é chancelada pelo selo Carbon Free, da ONG Iniciativa Verde.
O uso responsável dos recursos se dá com o manejo orgânico e sustentável do solo e de toda a produção, incluindo as lavouras de onde vêm os alimentos para as vacas, como sorgo e feijão lab lab. E o próprio plantio das florestas de compensação, feito com plantas nativas da região, ajuda a otimizar a eficiência dos serviços ambientais.
PARA COMPENSAR A PRODUÇÃO, A EMPRESA PRECISA PLANTAR 3 HECTARES DE FLORESTA POR ANO
Ser uma empresa carbono zero dá trabalho. O inventário inclui as emissões de metano que vêm do arroto e dejetos dos animais, o gasto de energia na ordenha e produção, as emissões de maquinários utilizados na lavoura que produz os alimentos, e as emissões geradas na produção das embalagens e no transporte.
O resultado é que, para compensar as emissões da sua produção de 4 mil litros de leite por dia, a NoCarbon precisa plantar 3 hectares de floresta por ano.
“Escolhemos esse método de neutralização por duas razões. Primeiro, porque ele é verificável: as árvores estão lá para quem quiser ver. Segundo, porque além do sequestro de carbono, o plantio de florestas tem externalidades positivas do ponto de vista da biodiversidade e dos recursos hídricos”
As florestas são plantadas em pontos estratégicos, dentro da Fazenda da Toca, diz Luís. No futuro, será preciso expandir esse plantio para outras áreas. Por enquanto, porém, a empresa já preparou o plantio suficiente para seu primeiro ano de operação.
Segundo o empreendedor, até o fim de 2021 haverá mais hectares plantados do que o necessário. Portanto, a NoCarbon entrará em 2022 com estoque de carbono.
EM BREVE, A NOCARBON DEVE ENCORPAR O PORTFÓLIO E ALCANÇAR NOVOS PONTOS DE VENDA
A NoCarbon começou com um investimento de 4 milhões de reais, entre aportes dos sócios e captação através das plataformas de financiamento Sitawi e Conexsus. Uma nova injeção de 2 milhões de reais está prevista para turbinar a frente comercial e escalar o produto.
“A projeção é fechar o primeiro ano de operação [com faturamento] na casa de 6 milhões de reais”, diz Luís. “E a partir do segundo ano, isso deve ter um aumento significativo. Nossa meta é chegar em 50 milhões de reais em 2023 sem precisar abrir uma nova frente de produção.”
Com a estrutura disponível hoje, dentro da Fazenda da Toca, Luís afirma que a marca consegue dobrar a produção, chegando a 8 mil litros de leite por dia, o que deve ser atingido em dois anos.
Para alavancar o crescimento, a NoCarbon planeja encorpar o portfólio e os canais de distribuição. Novos produtos estão em fase final de desenvolvimento e devem chegar ao mercado no primeiro trimestre de 2022: manteiga, requeijão, iogurtes e bebidas lácteas.
Além disso, a empresa afirma que sua marca em breve vai desembarcar em quatro grandes redes de varejo: Pão de Açúcar, Oba Hortifruti, Natural da Terra e Carrefour. Hoje, a NoCarbon já está presente em cerca de 80 pontos de venda.
O CRESCIMENTO SUSTENTÁVEL VEM COM RESPEITO À BIODIVERSIDADE E TECNOLOGIA
No futuro, para ampliar ainda mais a produção (para além do dobro da capacidade atual), abrir novas unidades talvez seja inevitável. Mas uma alternativa é fortalecer a parceria com pequenos produtores.
“Temos um grupo de seis produtores menores que já tinham certificados orgânicos e tiveram os contratos de fornecimento rescindidos pela Nestlé, por diversas razões”, diz Luís. “Fizemos um acordo pelo qual eles buscam a certificação de bem-estar animal e carbono neutro — e, assim que tivermos a demanda por mais leite, vamos comprar deles.”
Para o controle de carrapatos (normalmente feito com carrapaticidas químicos, vetados em produções orgânicas), a NoCarbon recorreu à Decoy. A startup de Ribeirão Preto (SP) desenvolveu um fungo que, ao ser aplicado nos animais, faz o controle de forma natural.
Quanto à alimentação do gado, Luís explica que a NoCarbon dominou a técnica para garantir, sem uso de agrotóxicos, a produtividade da comida orgânica oferecida aos bovinos:
“Quando começamos, todo mundo dizia que era impossível produzir essas lavouras sem usar herbicida, fungicida e inseticida. Hoje, sabemos que adubando apenas com esterco de galinha é possível ter alta produtividade em sorgo, milho e outros itens”
Um aprendizado foi abraçar a diversidade vegetal. Quando “plantas invasoras”, como o balãozinho (Cardiospermum halicacabum), cresceram em meio ao sorgo e ao feijão lab lab, o veterinário da Fazenda pesquisou e descobriu que a espécie não era tóxica. E o balãozinho foi incorporado à dieta das vacas (que “adoraram” a plantinha).
“A agricultura convencional é a agricultura da exclusão. É a antítese da diversidade. Aqui, estamos aprendendo a conviver com a diversidade. A pergunta é: onde está escrito que uma vaca pode comer balãozinho? Não está. Mas onde está escrito que ela não pode? Também não está.”