Tanto é que há quem pague quase R$ 1 mil por um quilo de um tipo de queijo que passa pelo processo de cura sem ser lavado, para que os fungos atraiam os ácaros. Ali, eles ficam até que se forme uma casca grossa e um miolo com sabor diferenciado. O processo de maturação pode levar até um ano, o que torna esses queijos muito raros e especiais.
Na Alemanha, a fórmula do famoso queijo Milbenkäse vem da Idade Média. Na França, há duas marcas importantes e igualmente caras: o Mimolette e o Artisou. O Brasil poderia se beneficiar deste restrito mercado de queijos raros, mas a legislação não permite a presença de ácaros na fabricação do produto.
Queijo Parmesão produzido em Santa Catarina infestado por ácaros. Foto: Michelle Carvalho
Para reavaliar esses aspectos, uma pesquisa, que tem a participação da UFV, apresenta dois objetivos: questionar a legislação e sugerir mudanças cientificamente embasadas para beneficiar os produtores de queijo, especialmente os de Minas Gerais. Em fevereiro, o trabalho que começou a atestar a segurança nutricional de queijos maturados com ácaros da espécie Tyrophagus putrescentiae mereceu destaque no editorial da prestigiada revista científica International Journal of Dairy Technology.
Nele, os pesquisadores das universidades federais de Viçosa (UFV), Santa Catarina (UFSC) e Tocantins (UFT), da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia e do Instituto Biológico de Campinas avaliaram se a alimentação com queijos maturados com essa espécie prejudicaria o estado fisiológico de camundongos saudáveis e imunossuprimidos, ou seja, aqueles que foram induzidos a ter baixa imunidade.
O método
Os dois grupos foram divididos em subgrupos de animais alimentados por cerca de 15 dias exclusivamente com os queijos especiais e outros com produtos maturados sem ácaros. Os resultados demonstraram que os queijos maturados na presença de ácaros não influenciaram negativamente a saúde dos indivíduos que se alimentaram deles.
Os camundongos imunossuprimidos tiveram a imunossupressão revertida após essa alimentação, assim como o grupo controle, que foi alimentado de queijos maturados sem ácaros. Nenhum deles apresentou diferenças significativas em exames de sangue e de fígado. Segundo Alex Cangussu, egresso do Programa de Pós-Graduação em Microbiologia da UFV e atualmente professor da UFT, a relevância do trabalho decorre da utilização de camundongos imunossuprimidos, que possibilitaria a identificação de quaisquer toxicidades pelo consumo de queijos maturados na presença de ácaros.
Na UFV, o professor do Departamento de Entomologia Eugênio Oliveira, que é especialista em toxicologia de insetos, fez o delineamento dos experimentos para garantir a segurança dos produtos maturados com a espécie de ácaro. De acordo com ele, que é um dos autores do trabalho, o próximo passo será investigar as bases fisiológicas-moleculares que norteiam as interações ecológicas entre os ácaros, fungos e queijo, identificadas ao longo da pesquisa.
O passo a passo para sugerir mudanças na legislação
O interesse em questionar a legislação vigente partiu de produtores de queijos especiais em regiões tradicionalmente produtoras de Minas Gerais, como o Serro, Alagoa e Cerrado. A pesquisadora Michelle Carvalho, ex-aluna do curso de Ciência e Tecnologia de Laticínios da UFV e doutora em Ciência dos Alimentos pela UFSC, conta que o trabalho começou em 2018, quando os pesquisadores fizeram uma revisão das legislações brasileira e internacional sobre a presença de ácaros em produtos lácteos.
Em outro trabalho, eles caracterizaram as espécies mais comuns de ácaros encontradas em regiões produtoras de queijos maturados no Sul e Sudeste do Brasil. Michele Carvalho explica que as espécies usadas nos queijos famosos na Alemanha e na França são diferentes daquelas mais encontrados nos locais onde são maturados os produtos brasileiros.
“Aqui, o mais comum é o Tyrophagus putrescentiae, que se alimenta dos fungos naturalmente presentes em ambientes de maturação de queijos”, disse ela. No nosso país, é possível comprar queijos importados da França, mas os brasileiros não podem produzi-los. “Contraditoriamente, o Brasil realizou a pesquisa de segurança de consumo que a França não fez”, lamentou Michele.
Os resultados dos trabalhos dos pesquisadores vão além dos queijos intencionalmente maturados com ácaros. É que a presença deles é um fenômeno recorrente em diversos tipos de queijos maturados e, pela legislação brasileira, quando esse fenômeno acontece, as indústrias não têm embasamento legal para realizar a limpeza e continuar o processo de maturação.
“Normalmente, os queijos são condenados e descartados, o que poderia ser evitado, se houvesse uma conduta correta”, disse Michele.
De acordo com o professor Eugênio Oliveira, antes de promover o desenvolvimento de queijos especiais, é preciso que a ciência ateste a segurança deles para o consumo. Além disso, é importante também que a legislação brasileira se adapte a um novo produto que pode agregar valor à produção de queijos artesanais de alto padrão no país.