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27 abr 2025
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É ilegal vendê-lo ou comprá-lo. Está infestado de larvas - "e isso é o feitiço e a delícia deste queijo". Diz-se que o casu marzu é afrodisíaco.
Se conseguir ultrapassar a compreensível repugnância, o marzu tem um sabor intenso que lembra as pastagens mediterrânicas

A ilha italiana da Sardenha fica no meio do Mar Tirreno. Rodeada por uma costa de 1.849 quilómetros de praias de areia branca e águas cor de esmeralda, a paisagem interior da ilha sobe rapidamente para formar colinas e montanhas.

E é nestas curvas que os pastores produzem o casu marzu, um queijo infestado de larvas que em 2009 o Guinness World Record proclamou como o queijo mais perigoso do mundo.

A mosca do queijo, Piophila casei, põe os seus ovos nas fendas que se formam no queijo, geralmente o fiore sardo, o pecorino salgado da ilha.

As larvas eclodem, abrindo caminho através da pasta, digerindo as proteínas e transformando o produto num queijo cremoso e macio.

Depois, o queijeiro abre a parte de cima – que quase não é tocada pelas larvas – para colher uma colherada da iguaria cremosa.

Alguns habitantes locais fazem girar o queijo numa centrifugadora para fundir as larvas com o queijo. Outros gostam dele ao natural. Abrem a boca e comem tudo.

 

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O casu marzu é feito com leite de ovelha foto Sean Gallup/Getty Image

 

Se conseguir ultrapassar a compreensível repugnância, o marzu tem um sabor intenso que lembra as pastagens mediterrânicas e é picante, com um travo que permanece durante horas.

Alguns dizem que é afrodisíaco. Outros dizem que pode ser perigoso para a saúde humana, uma vez que as larvas podem sobreviver à mordedura e criar miíases, microperfurações no intestino, mas até à data não foi registado qualquer caso relacionado com o casu marzu.

O queijo está proibido de ser comercializado, mas há séculos que os sardos o comem, incluindo as larvas saltadoras.

“A infestação de larvas é o feitiço e a delícia deste queijo”, diz Paolo Solinas, um gastrónomo da Sardenha.

Paolo Solinas explica que alguns sardos arrepiam-se ao pensar no casu marzu, mas outros, criados com uma vida inteira de pecorino salgado, adoram sem pudor os seus sabores fortes.

“Alguns pastores veem o queijo como um prazer pessoal único, algo que apenas alguns eleitos podem experimentar”, acrescenta Solinas.

Cozinha arcaica

 

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É ilegal vender ou comprar casu marzu foto Giovanni Fancello

 

Quando os turistas visitam a Sardenha, normalmente vão parar a um restaurante que serve porceddu sardo – um leitão assado lentamente -, visitam padeiros que vendem pane carasau – um pão achatado tradicional fino como papel – e conhecem pastores que produzem fiore sardo, o queijo pecorino da ilha.

No entanto, se for suficientemente aventureiro, é possível encontrar o casu marzu. Não deve ser visto como uma atração estranha, mas sim como um produto que mantém viva uma tradição antiga e que sugere o futuro da alimentação.

Giovanni Fancello, um jornalista e gastrónomo da Sardenha, passou a vida a investigar a história da alimentação local. A sua história remonta a uma época em que a Sardenha era uma província do império romano.

“O latim era a nossa língua e é no nosso dialeto que encontramos os vestígios da nossa cozinha arcaica”, diz Fancello.

 

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O queijo só pode ser produzido em determinadas alturas do ano, quando o leite de ovelha está bom

Segundo Fancello, não existe qualquer registo escrito das receitas da Sardenha até 1909. Foi nessa altura que Vittorio Agnetti, um médico de Modena, viajou para a Sardenha e compilou seis receitas num livro chamado “La nuova cucina delle specialità regionali”.

“Mas nós sempre comemos minhocas”, revela Fancello. “Plínio, o Velho, e Aristóteles falavam disso.”

Dez outras regiões italianas têm a sua variante de queijo infestado de larvas, mas enquanto os produtos de outras regiões são considerados como produtos únicos, o casu marzu faz parte intrínseca da cultura alimentar da Sardenha.

O queijo tem vários nomes diferentes, como casu becciu, casu fattittu, hasu muhidu, formaggio marcio. Cada subrregião da ilha tem a sua própria forma de o produzir, utilizando diferentes tipos de leite.

“Eventos mágicos e sobrenaturais”

Os apreciadores de comida inspirados pelas proezas de chefs como Gordon Ramsay vêm frequentemente à procura do queijo, afirma Fancello. Perguntam-nos: “Como é que se faz o casu marzu? Faz parte da nossa história. Nós somos os filhos desta comida. É o resultado do acaso, de eventos mágicos e sobrenaturais.”

Fancello cresceu na cidade de Thiesi com o seu pai Sebastiano, que era um pastor que fazia casu marzu. Facello pastoreava as ovelhas da família nos pastos à volta do Monte Ruju rural, perdido nas nuvens, onde se acreditava que a magia acontecia.

Recorda que, para o seu pai, o casu marzu era uma dádiva divina. Se os seus queijos não ficassem infestados de larvas, ele ficava desesperado. Alguns dos queijos que produzia ficavam para a família, outros iam para amigos ou pessoas que os pediam.

O casu marzu é tipicamente produzido no final de junho, quando o leite das ovelhas locais começa a mudar à medida que os animais entram no seu período reprodutivo e a erva seca devido ao calor do verão.

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A cidade costeira de Alghero, na Sardenha foto Miguel Medina/AFP/Getty Images

 

Se soprar um vento siroco quente no dia da produção do queijo, a magia da transformação é ainda mais difícil. Fancello diz que isso se deve ao facto de o queijo ter uma estrutura mais fraca, facilitando o trabalho da mosca.

Após três meses, a iguaria está pronta.

Mario Murrocu mantém vivas as tradições do casu marzu na sua quinta, Agriturismo Sa Mandra, perto de Alghero, no norte da Sardenha. Também cria 300 ovelhas e recebe hóspedes na sua trattoria, mantendo vivas as tradições do casu marzu.

“Sabe-se quando uma forma se vai tornar casu marzu”, conta. “Vê-se pela textura esponjosa invulgar da pasta.”

Atualmente, isso não se deve tanto à sorte mas às condições ideais que os queijeiros utilizam para garantir o maior número possível de casu marzu. Também descobriram uma forma de utilizar frascos de vidro para conservar durante anos o queijo, que tradicionalmente nunca durava além de setembro.

 

Coimas elevadas

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O casu marzu da Sardenha remonta ao tempo dos romanos foto Alice Mastinu

Embora venerado, o estatuto legal do queijo é uma zona cinzenta.

O casu marzu está registado como um produto tradicional da Sardenha e, por conseguinte, está protegido a nível local. No entanto, é considerado ilegal pelo Governo italiano desde 1962, devido a leis que proíbem o consumo de alimentos infetados por parasitas.

Quem vende o queijo pode ser sujeito a multas elevadas, que podem ascender a muitos milhares de euros, mas os sardos riem-se quando questionados sobre a proibição do seu querido queijo.

Nos últimos anos, a União Europeia começou a estudar e a reavivar a ideia de comer larvas graças ao conceito de novel food, em que os insetos são criados para serem consumidos.

A investigação mostra que o seu consumo pode ajudar a reduzir as emissões de dióxido de carbono associadas à criação de animais e contribuir para atenuar a crise climática.

nota do editor
Este artigo foi originalmente publicado em 2021.

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