Uma língua artificial feita com leite promete revolucionar a forma como medimos o nível de picância dos alimentos — e sem pôr em risco nenhuma papila gustativa. A inovação foi desenvolvida por um grupo de pesquisadores chineses que se inspirou na caseína, a proteína do leite capaz de neutralizar o ardor causado pela capsaicina, o composto que dá às pimentas seu famoso “fogo”.
O estudo, publicado na revista ACS Sensors, da American Chemical Society (ACS), mostra que o sensor à base de leite consegue detectar rapidamente compostos picantes em alimentos como pimentas, molhos e até ingredientes como alho e gengibre. A equipe liderada por Weijun Deng descreve o dispositivo como uma “língua artificial flexível”, com potencial para uso em robôs humanoides, dispositivos portáteis de monitoramento de sabor e até em pacientes com disfunções sensoriais, como a ageusia (perda do paladar).
“Nossa língua artificial tem enorme potencial para estimar sensações de ardência de forma precisa e rápida”, afirmou Deng, em nota à ACS.
🧫 A química do picante — e o papel do leite
O sabor picante sempre desafiou a ciência dos sensores. Diferente dos gostos básicos — doce, salgado, azedo, amargo e umami —, o picante é, na verdade, uma sensação de dor térmica provocada pela capsaicina, piperina (da pimenta-do-reino) e alicina (do alho). Reproduzir essa sensação com materiais sintéticos é uma tarefa complexa.
A equipe liderada por Jing Hu observou que a caseína do leite se liga naturalmente à capsaicina, “apagando” o fogo que ela provoca. Essa propriedade inspirou o grupo a adicionar leite em pó desnatado a um gel eletroquímico, criando um material sensível à presença desses compostos ardentes. Quando a capsaicina se liga à caseína, há uma mudança na corrente elétrica do gel — e é essa variação que a língua artificial detecta.
O resultado é uma fina película transparente, criada a partir de ácido acrílico e cloreto de colina, combinados com leite em pó. Após exposição à luz ultravioleta, o gel ganha flexibilidade e capacidade condutora. Em apenas dez segundos de contato com capsaicina, o dispositivo registra uma diminuição na corrente elétrica, indicando a intensidade da ardência.
🌶️ Do laboratório à mesa
Para testar o protótipo, os cientistas aplicaram a língua artificial em oito tipos de pimenta e oito alimentos picantes, incluindo molhos populares. Em paralelo, um painel humano de degustadores avaliou os mesmos produtos. O resultado foi surpreendente: as medições do dispositivo coincidiram em grande parte com as percepções humanas de ardor.
Isso significa que, em breve, um equipamento simples poderia medir objetivamente o “nível de fogo” de uma pimenta ou molho antes que chegue ao consumidor. As aplicações vão desde indústrias alimentícias que precisam padronizar seus produtos até chefs e fabricantes de condimentos interessados em rotular corretamente o grau de picância de cada receita.
“A língua artificial com leite pode avaliar a intensidade do picante sem precisar de degustadores humanos — e sem risco de dor”, resumem os autores.
🔬 Além da gastronomia: novas fronteiras
O impacto do leite artificial pode ir além da culinária. Dispositivos desse tipo abrem espaço para robôs sensoriais capazes de perceber sabores ou para sistemas de monitoramento de dietas personalizados. Também podem ajudar em tratamentos de pacientes que perderam a sensibilidade gustativa.
Os cientistas destacam ainda que o material é de baixo custo, fácil de produzir e ambientalmente seguro, já que utiliza componentes alimentares comuns. A pesquisa recebeu apoio da Fundação Nacional de Ciências Naturais da China e do Laboratório Provincial de Fujian para Design e Fabricação de Couro Ecológico — instituições voltadas à inovação tecnológica sustentável.
🥛 O poder (ainda subestimado) do leite
A descoberta reforça algo que os consumidores já sabiam empiricamente: leite é o melhor antídoto contra o ardor da pimenta. Enquanto a água espalha a capsaicina pela boca, aumentando o desconforto, as proteínas do leite se ligam às moléculas do composto, neutralizando o efeito. Agora, a ciência levou esse princípio a um novo patamar — o de medir, e não apenas aliviar, o fogo.
⚗️ Ciência, sabor e inovação
Fundada em 1876, a American Chemical Society (ACS) é uma das maiores organizações científicas do mundo, dedicada à promoção da química e à disseminação do conhecimento científico. A entidade destaca que o estudo chinês demonstra como a química pode aproximar ciência e experiência sensorial, unindo precisão técnica e prazer gastronômico.
Em um cenário em que a automação e a inteligência artificial se infiltram até na cozinha, o projeto chinês mostra que a próxima fronteira da gastronomia tecnológica pode ser, literalmente, sentir o sabor — e que o humilde leite, símbolo de nutrição e equilíbrio, continua sendo protagonista também na inovação científica.
*Escrito para o eDairyNews, com informações de Newswise






