Antigamente visto como um produto arriscado, o leite cru retorna ao cardápio dos consumidores. A legislação ao redor do mundo tem se ajustado a essa tendência. Na Suíça, por exemplo, a regulamentação depende das informações nos rótulos e da responsabilidade individual de quem opta pelo consumo.
Leite: um dos produtos mais consumidos no mundo. Lars Berg / Laif
Leite: um dos produtos mais consumidos no mundo. Lars Berg / Laif

 

Quando Schultz conquistou seu assento na Câmara dos Deputados de Iowa, em 2008, ele não contava com muita resistência, considerando que Iowa é um estado agrário do centro-oeste do país, conhecido por plantações de milho e criação de porcos. A Feira Estadual de Iowa promove até mesmo uma vaca de 600 quilos feita inteiramente de manteiga. “Achei que seria fácil”, disse Shultz, hoje senador por Iowa.

 

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Entretanto, ele não havia conseguido aprovar seu projeto de lei até maio do ano passado – quando os republicanos passaram a controlar a Assembleia Legislativa; e a governadora republicana, Kim Reynolds, assinou a lei do leite cru. A partir de 1º de julho de 2023, os fazendeiros de Iowa tiveram permissão para vender leite não pasteurizado diretamente aos consumidores.

A resistência veio então de órgãos de saúde pública e grandes grupos de laticínios, com o argumento de que o leite cru seria um perigo para a saúde pública, pois poderia conter patógenos nocivos. “Tudo o que eu queria era que os habitantes de Iowa, que buscavam acesso ao leite fresco, não temessem a intromissão do governo ou de empresas em suas ações. Finalmente, conseguimos isso”, diz Schultz.

Iowa junta-se à crescente maioria dos estados americanos que permitem a venda de leite cru, mas ter acesso ao produto é mais complexo do que apenas viver em um estado que não o proíbe. Entre os 30 estados que permitem a venda, 17 permitem apenas a venda direta pelas propriedades rurais.

Um total de 20 estados proíbe a venda direta do leite não pasteurizado, mas oito deles permitem acordos de “compartilhamento de rebanho”, em que os compradores possuem uma participação em um rebanho de vacas e podem obter leite para consumo pessoal. Para complicar ainda mais a situação, a lei federal não permite que se cruze as fronteiras entre os estados transportando leite cru.

 

Assim como ocorre dentro dos EUA, a legislação sobre a venda de leite não pasteurizado costuma variar muito nas diversas regiões do mundo. A Austrália, o Canadá, a China e a Escócia proíbem a venda de leite cru, enquanto na maior parte da Europa e no Japão ele só pode ser vendido por propriedades rurais que atendam a determinados padrões de higiene e concordem em ser submetidas a controles aleatórios.

O Brasil proibiu a venda do leite cru, exceto em áreas remotas que não têm acesso a um fornecimento regular de leite pasteurizado.

Na Suíça, em teoria, a venda do leite cru é ilegal, mas pode ocorrer sob determinadas circunstâncias. As regulações de alimentos no país não permitem que o leite cru seja anunciado ou vendido para consumo direto. Todo o leite vendido na Suíça deve ser pasteurizado, sendo aquecido a pelo menos 72°C por 15 segundos e depois resfriado rapidamente.

 

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No entanto, a Suíça ainda tem cerca de 400 máquinas de venda de leite cru operadas por propriedades rurais espalhadas pelo país.

“Na Suíça, o leite cru não é considerado pronto para o consumo e só pode ser fornecido aos consumidores, se eles forem informados sobre o prazo de validade, as condições de armazenamento e o aquecimento correto”, respondeu por e-mail um porta-voz do Departamento Federal de Segurança Alimentar e Assuntos Veterinários (OSAV, na sigla em francês).

Assim, os produtores suíços de leite cumprem as regulamentações colocando uma etiqueta nas máquinas de venda automática, alertando os compradores de que eles devem aquecer o leite. Se quem compra faz isso ou não, já não é responsabilidade do vendedor.

“Para a venda aberta de leite cru ou para máquinas de venda automática, é necessária uma declaração explícita. A responsabilidade recai apenas sobre o consumidor. Até o momento, praticamente não houve qualquer problema com essa regulamentação”, diz Thomas Reinhard, diretor de projetos e suporte da Swissmilk, associação de produtores de leite da Suíça.

Copos plásticos colocados ao lado de uma máquina de venda de leite cru, perto da capital Berna, visitada pela SWI swissinfo.ch, indicam que alguns consumidores bebem o leite não pasteurizado no local, sem levá-lo para casa, a fim de aquecê-lo conforme indicado.

 

Os produtores suíços de leite não fazem grandes negócios com a venda do leite não pasteurizado, mas isso ajuda a diversificar sua oferta.

“O equipamento para venda automática de leite cru é bastante caro; vendê-lo não é uma atividade muito lucrativa, mas cubro meus custos. É mais um serviço para meus clientes do que uma fonte de lucro”, diz Nicolas Pellaud, que administra uma empresa de laticínios e queijos artesanais no vilarejo da estação de esqui de Nendaz, no oeste da Suíça.

 

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Assim como Pellaud, Esther Mottier também afirma que sua principal motivação é o desejo de atender a uma demanda específica dos clientes, e não questões financeiras. A máquina de venda automática de leite não pasteurizado, que fica ao lado de sua loja de produtos orgânicos em Château-d’Œx, volta-se para um grupo de nicho de aficionados, que têm intolerâncias alimentares ou que preferem leite de vacas com chifres.

“A venda de leite cru por meio de uma máquina de venda automática oferece, de fato, um preço melhor por litro do que a venda a atacadistas ou varejistas. Entretanto, as quantidades vendidas são muito limitadas e não constituem um volume suficiente para tornar essa atividade realmente lucrativa”, diz Mottier.

A legislação que regulamenta o leite cru faz parte de um debate maior sobre os benefícios e riscos à saúde associados a seu consumo. Há quatro anos, o instituto suíço de pesquisa agrícola Agroscope realizou um estudo sobre os benefícios do leite cru para a saúde e concluiu que o leite não pasteurizado e os produtos derivados dele têm um efeito positivoLink externo na diversidade da microbiota intestinal.

Uma análise de 2022Link externo da Pesquisa de Segurança Alimentar de 2016 e da Pesquisa de Segurança Alimentar e Nutrição de 2019, feita pelo FDA (departamento de supervisão de segurança alimentar e de medicamentos nos EUA), mostra que cerca de 4,4% dos estadunidenses consumiram leite cru pelo menos uma vez no último ano. Esses consumidores eram tendencialmente jovens, moradores da zona rural em um estado, no qual a venda do leite cru no varejo é legalizada.

Uma pesquisa de 2014Link externo com consumidores de leite cru no noroeste do Pacífico, realizada pela Universidade de Oregon, mostrou que o sabor (72%), os benefícios gerais percebidos para a saúde (67%), o apoio às propriedades rurais locais (60%) e a prevenção de doenças (50%) foram as principais razões apresentadas para a preferência dos consumidores.

“Devolver a liberdade aos cidadãos de Iowa é a razão de meus esforços. Os benefícios e riscos estão todos nas mãos do cidadão, de forma semelhante ao que você descreve que ocorre na Suíça”, diz Schultz, o político de Iowa.

Risco versus recompensa

Apesar de seu recente retorno ao consumo, pesquisas mostram que o leite não pasteurizado pode representar riscos à saúde. De acordo com o Centro de Controle de Doenças dos EUA, “beber ou comer produtos feitos com leite cru pode expor as pessoas a germes como Campylobacter, Cryptosporidium,

E. coli, Listeria, Brucella e Salmonella”. O FDA nos EUA, os Centros de Controle de Doenças e organizações como a Academia Norte-Americana de Pediatria alertam que o leite cru não é seguro. Em julho deste ano, 165 estadunidenses (a maioria crianças) adoeceram em decorrência de um surto de Salmonella ligado a uma fazenda que vendia leite não pasteurizado na Califórnia.

Na Suíça, o rótulo das máquinas de venda automática de leite cru não traz qualquer advertência sobre os riscos de consumi-lo sem ser aquecido. O artigo 13 da lei federal sobre gêneros alimentícios dá ao governo o poder de impor requisitos especiais de rotulagem para sinalizar “perigos específicos”. Essa opção não vem sendo usada para alertar os consumidores sobre os riscos do leite cru – pelo menos até o momento.

Além das bactérias perigosas, um novo risco em potencial surgiu no horizonte: a gripe aviária. No final de março, a gripe aviária, altamente patogênica, foi detectada no gado leiteiro dos EUA. Pesquisadores constataramLink externo que o vírus da gripe aviária estava presente em 57,5% das 275 amostras de leite cru coletadas de rebanhos nos quatro estados afetados, com testes adicionais revelando que um quarto delas continha vírus infeccioso.

Um estudo subsequente de acompanhamento mostrou que a pasteurização matou todo o vírus da gripe aviária no leite cru adicionado artificialmente com o vírus.

“Na Suíça e em outros países da Europa, não há casos atuais conhecidos de gripe aviária em vacas. Portanto, não vemos necessidade, no momento, de proibir a venda do leite cru”, diz o porta-voz do Departamento Federal de Segurança Alimentar e Veterinária da Suíça.

No entanto, o próprio Instituto de Imunologia e Virologia do órgão federal, em colaboração com o instituto suíço de pesquisa agrícola Agroscope, está atualmente avaliando os possíveis riscos associados à presença do vírus da gripe aviária no leite cru. “Se novos conhecimentos científicos estiverem disponíveis, tomaremos as medidas necessárias”, afirmou o porta-voz.

Edição: Virginie Mangin

Adaptação: Soraia Vilela

O Acordo Mercosul-UE abre novas oportunidades para a indústria láctea brasileira, com eliminação de tarifas e desafios regulatórios em sustentabilidade e segurança alimentar.

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