Na hora do rush, a fila em frente ao balcão da Cadore é um cartão postal recorrente na Avenida Corrientes. Fundada em 1957, essa tradicional sorveteria de “gelato artigianale” foi destacada pelo Traveler’s Choice Awards 2024 do TripAdvisor como uma das 10% das sorveterias mais bem avaliadas do mundo.
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Quem for até lá hoje encontrará alguns dos mesmos sabores que seus pais apreciavam. Pouca coisa mudou lá, e é isso que atrai as multidões.
“O doce de leite, o doce de leite granizado e o chocolate amargo são os sabores mais populares, embora nos últimos dois anos o pistache esteja no pódio”, diz Gabriel Fama, sobrinho do fundador da sorveteria, Silvestre Olivotti, que, junto com Domingo Delerba, administra o estabelecimento, que foi declarado Sítio de Interesse Cultural pela Legislatura de Buenos Aires há alguns anos.
A poucas quadras dali, no coração de Palermo, há outro sorvete que também dá o que falar e tem fãs, mas por motivos diferentes. A disrupção é, sem dúvida, a bandeira da Obrador Florida, que, a partir de seu quadro negro limitado, propõe sabores que se distanciam do conceito de “clássico”: queijo de cabra com groselha, cana-de-açúcar e creme de gengibre com castanha de caju, entre outros, são algumas das opções a serem degustadas. Há doce de leite, sim, mas um que é “perfumado”, com “um toque de limão e laranja para completar o sabor no nariz”, descreve o menu de sabores.
Nossa proposta é usar o sorvete como uma desculpa, como uma tela para contar histórias sobre produtos argentinos locais”, explica Mercedes Román, criadora da Obrador Florida e designer gráfica especializada em branding e design de alimentos. Não usamos os métodos de produção usuais dos fabricantes de sorvete, mas usamos técnicas de culinária gastronômica”.
É óbvio: de Cadore a Obrador Florida é um mundo de distância. E é ali, entre as sorveterias tradicionais e as modernas, que começa a surgir um novo cenário (e uma nova fissura) para os fãs desse produto icônico. Não faltam adeptos de ambos os lados: na Argentina, o consumo per capita de sorvete é de 7,3 quilos por ano (levando em conta apenas os sorvetes artesanais) e está claro que ele vem sendo dessazonalizado há algum tempo. De acordo com uma pesquisa da D’Alessio Irol, de fato, um em cada três argentinos consome sorvete artesanal pelo menos uma vez por semana durante todo o ano, independentemente de estar quente ou frio.
Inovação e ruptura
Junto com a Itália, a Argentina é um ponto de referência no mundo dos sorvetes artesanais”, diz Maximiliano Maccarrone, presidente da Associação de Fabricantes de Sorvetes Artesanais e Indústrias Afins (Afadhya). Há grandes clássicos no país, com sorveterias que têm 50, 60 ou mais anos de história, mas, ao mesmo tempo, há muita inovação. Ao contrário do sorvete industrial, que leva anos para introduzir uma mudança, no sorvete artesanal a criação acontece dia após dia, em uma busca constante para dar sempre algo novo ao cliente”.
Inovações? Muitas, diz Maccarrone, e ele enumera: “Desde porções individuais em diferentes formatos (picolés, barras, palitos, chocolates) até o surgimento de sorvetes naturais (inclusive com a combinação de diferentes sabores de frutas em um mesmo sorvete), e o avanço e a multiplicação de uma grande variedade de coberturas, que permitem que o sorvete seja personalizado de acordo com as preferências do consumidor”.
Nessa linha, na Dolce by Blossom, a sorveteria do norte da cidade, inaugurada em frente à Catedral de San Isidro, eles desenvolveram uma proposta original de bombons de sorvete com sabores como beterraba (dacquoise, sorvete de laranja e cobertura de chocolate de beterraba); avelã (dacquoise, sorvete de avelã, praliné e cobertura de chocolate de avelã) ou Rocher (dacquoise, sorvete de gianduia, nutella crocante e cobertura de leite de avelã). Nós os criamos com o conceito de porções individuais em mente, procurando algo que fosse fácil de comer”, diz Ignacio Guerrero, mestre sorveteiro da Dolce. Eles são inspirados nos clássicos chocolates cortados, mas com sorvete. Tudo é feito com chocolates naturais e artesanais, de alta qualidade”.
Na Martinelli, a cadeia de sorveterias e cafeterias especializadas que leva a assinatura do italiano Carlo Contini, há uma maneira particular de servir sorvete. “Não o servimos com a clássica ponta argentina, mas em forma de rosa”, diz Contini, e acrescenta: ‘Não somos uma sorveteria como as comuns em Buenos Aires: usamos receitas italianas e não temos muitos sabores, apenas 24. Os mais vendidos são pistache e nutella’.
A oferta de “gelato italiano” do Martinelli inclui opções veganas e sem TACC (adequadas para celíacos), entre as quais se destacam especialidades na seção de sobremesas, como pão de brioche quente com opção de duas bolas de sorvete ou diferentes versões de affogati – uma bola de sorvete coberta com uma dose de café expresso quente. Há o Siciliano (expresso com sorvete de pistache, chantilly e pistache picado), o Torinese (expresso com sorvete de sabayon, chantilly, cacau e avelã) e o Nutellino (expresso com sorvete de nutella, chantilly e nutella).
Há até mesmo uma sorveteria em Palermo chamada Arkyn que decidiu ir além dos limites e oferece aos clientes sabores que evocam as guloseimas icônicas de uma geração, como Palito de la Selva, chiclete Bazooka, Pico Dulce ou Rhodesia. “Queríamos algo inovador e isso surgiu ao nos lembrarmos de nossa infância: conseguimos o sabor autêntico dos doces”, diz Cristian Tavano, que administra o local com seu irmão Alex. “Também temos picolés com os personagens Batman, Super-Homem, Homem de Ferro e Hulk. Os sabores mais populares, ele explica, são Palito de la Selva, Pico Dulce e Bananita Dolca. Eles também têm chocolate picante e, para o verão, planejam acrescentar choco-pistache: “É um creme de chocolate, 80% de cacau, com uma base de creme de pistache e, por cima, pistaches inteiros. Uma explosão de sabor”, diz Cristian.
Naturalmente, a proposta mais radical quando se trata de romper com os clássicos é a do Obrador Florida. “A tradição italiana está jogando contra nós. Muitos anos se passaram”, diz Mercedes Román. “A gastronomia argentina está em um momento de grande visibilidade e é uma oportunidade de dizer ‘este é o nosso produto’ com sorvete”, diz Román.
Frutas, flores, folhas, raízes, caules e sementes são as estrelas do cardápio frio do Obrador Florida. O mais vendido é a baunilha, que é o emblema da nossa casa”, diz Mercedes. É uma mistura de três vagens de diferentes origens: Taiti, Madagascar e Uganda. Não é a artificial do setor, mas o resultado do fruto de uma orquídea tropical. Isso transforma um sabor muito popular em algo exclusivo.
Mercedes também enfatiza a busca para gerar uma mudança no consumidor: “Às vezes nos deparamos com um cliente que pede um pistache verde, quando o pistache, ao ser torrado, perde a cor durante o processamento e adquire tons marrons.
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Às vezes nos perguntam se o chocolate é doce ou amargo, que é a escolha binária do quiosque. O chocolate pode ser como um vinho: profundo, amargo, doce, floral, frutado. Estamos procurando dar um toque mais gastronômico ao sorvete para abrir a mente do consumidor, para que ele exija um pouco mais”.
O imbatível
É claro que nem todos optam pela inovação, mas simplesmente optam pelo mesmo sorvete de sempre: os mesmos sabores e apresentações ao longo dos anos. Em todo caso, a ênfase está em melhorar (e manter) a qualidade. “Os filhos e netos dos clientes vêm aqui para pedir o sorvete que costumavam comer quando eram crianças”, diz Susana d’Alessandro, uma das proprietárias da El Ciervo, um clássico no bairro de Liniers que celebrará seis décadas de vida no próximo ano.
“Os sabores mais populares são os clássicos: o doce de leite granizado está sempre no topo da lista. Também chocolate com amêndoas, sambayon e limão, além de morango com água”, acrescenta Francisco Macarrone, que comprou a El Ciervo em 1967, quando tinha apenas 20 anos de idade e dois anos de experiência no mundo dos sorvetes. Alguns sabores mais recentes – como o Crema Oreo – podem ser encontrados em seu quadro-negro, mas basta sentar-se no salão uma tarde para ver que os clássicos não têm concorrência.
A espinha dorsal de uma sorveteria são os sabores tradicionais”, diz Maximiliano Macarrone, da Afadhya (e filho de Francisco). Doce de leite granizado, chocolate com amêndoas… O sambayón é outro dos que não perderam sua relevância, a ponto de muitas sorveterias o terem entre os cinco primeiros, porque fazem um sambayón de alta qualidade, como era feito na Itália há 40 anos. O pistache, que é um sabor antigo, agora está na moda. É preciso produzir esses sabores da melhor maneira possível e depois inovar”.
Com experiência em gastronomia em ambos os lados do Atlântico, Carlo Contini celebra a cena do sorvete em Buenos Aires e fornece uma síntese. “Em Buenos Aires, o cenário é variado. Por um lado, há as grandes, como a Cadore ou a Scannapieco, mas em todos os bairros é possível encontrar uma sorveteria que produz um bom produto. Por outro lado, há a modernidade, como a Obrador Florida, que é completamente diferente. Para mim, tradição e inovação parecem ser uma boa equação”, conclui.