Para entender um queijo é preciso entender a sua região, os ciclos da natureza na sua ancestralidade. As gentes, no seu elemento, no seu viver, em todas as decantações da sua alma, das gerações que desde o princípio das coisas foram ficando no imemorial, daqueles tempos em que as aldeias hoje desertas estavam a fervilhar de gente, daquele tempo em que tudo faltava e só a pobreza era abundante.
Esse tempo, não foi assim há tanto tempo. Às vezes, mais parece presente do que passado.
Depende sempre de que lado se está do queijo. Não convém, portanto, confundir a pobreza com o queijo, embora uma e outra coisa não estejam separadas, da mesma forma que os animais não se separam da terra e a terra dos seus habitantes.
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De quem vem da estação de comboio, passando uma rotunda, mesmo antes de se entrar na Soalheira, concelho do Fundão, distrito de Castelo Branco, há uma placa que assinala: Cheese Route. Há uma razão concreta para isto, tão concreta quanto a vila da Soalheira se chamar assim.
Como se situa na encosta sul da serra da Gardunha, está bastante exposta ao sol, embora no rigor do Inverno o sol seja apenas uma expressão, como aquela que deu origem a um velho provérbio popular: “Nove meses de Inverno, três de Inferno”.
Por causa das alterações climáticas e o mais que o valha, já não é assim. A imponente serra da Gardunha que, do alto do maciço montanhoso da Beira Interior, define a sua paisagem bela e rude, onde pontificam o xisto e o granito e as pastagens, determina igualmente o clima. E o clima, agora como dantes, é o grande determinador.
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Ao assunto: o queijo. O queijo está enraizado na cultura beirã, em diversas camadas de sabedoria. O queijo que se produz na Soalheira já tem os seus pergaminhos firmados há muito tempo.
Na Beira Baixa, não há quem não conheça o queijo de mistura (ovelha e cabra) que ali se produz. O “queimoso”, que tem nunca menos do que um ano de cura, curado sobre palha de centeio, como mandam as mais longínquas tradições, que tem um picante específico e uma cor acinzentada.
E o “curado”, também de mistura, mais amarelado, onde se notam aromas silvestres.
Mas, como não podia deixar de ser, o queijo mais falado do momento é o que está esgotado na Queijaria Quinta do Pomar. O queijo de ovelha amanteigado, que tem travos residentes da flor do cardo – que é o elemento que dá alma a inúmeros queijos da região, sem excluir naturalmente o Serra da Estrela -, é o queijo que neste momento toda a gente quer comprar.
Em alguns casos, sem querer esperar. “As pessoas querem tudo para ontem”, brinca a Sonia, que é espanhola, mulher de Nuno Alves, que neste ano assumiu a liderança da queijaria. Joaquim Duarte Alves e Maria José Lucas, os seus pais, que fundaram a queijaria em 1983, resolveram que estava na hora de apreciar melhor o tempo, depois de uma vida de trabalho, alguns anos de emigração em França, e queijos que já lhe perderam a conta, não fosse o queijo uma tradição da família Alves.
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A queijaria cresceu para uma empresa sólida, que actualmente tem um volume de negócios que ultrapassa um milhão de euros anuais, à arte queijeira juntou-se a tecnologia, os processos industrializaram, mas o melhor queijo do mundo, assim como qualquer queijo de excelência, a par da qualidade do leite, não dispensa as leis do tempo, no seu vagar próprio.
A forma artesanal de fazer o queijo, com a forma industrial de o produzir, cumprindo todas as normas “higiénico-sanitárias exigidas nos tempos actuais”, não acelera o que só o tempo faz. Quis o destino e muitos anos a produzir queijo que o grande vencedor do World Cheese Awards 2024, consagrasse o amanteigado de ovelha desta queijaria como o melhor queijo do mundo.
Este queijo, tem um mínimo de 45 dias de cura, primeiro a uma temperatura mais baixa, depois a uma temperatura mais alta. Vale pena a espera, mas é preciso saber esperar, que é uma arte mais antiga do que o queijo.
Regresso às origens
Joaquim Duarte Alves e Maria José Lucas receberam-nos gentilmente em sua casa, não muito longe da azáfama da Queijaria Quinta do Pomar, que anda numa roda viva desde que conquistaram o prémio de melhor queijo do mundo. Não foi coisa pouca, entre 4786 queijos avaliados, originários de 47 países.
“É um orgulho para a nossa família, mas este prémio não é só nosso. É da Soalheira, do Fundão, dos produtores de leite da nossa região e também um prémio para os produtores de queijo do nosso país”, diz Joaquim. Maria José, sorri. “Se calhar o melhor é fazer-lhe as perguntas todas, para ele pensar no que responde.
Ele é muito bom a fazer queijos, mas entrevistas não é com ele”. Joaquim concorda, com o mesmo sorriso. “Nestas últimas semanas, não tem sido fácil. Ligam-nos de toda a parte do mundo. O problema são os directos para a televisão. Aí é que são elas”. É como o queijo. “É preciso ter calma”.
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Joaquim e Maria José são ambos da Soalheira. Os pais de Joaquim, quando ele era pequeno, negociavam gado. Por essa razão, conquistaram nos arredores o epíteto de “Marota”, que partilhavam como se fosse um nome de família, como no Alentejo se faz, em que as alcunhas se tornam apelido.
Na Beira Baixa, tal não é muito vulgar, mas sítios há em que as pessoas só se conhecem pelas alcunhas, à boa maneira portuguesa, aliás. Os pais de Joaquim Duarte Alves, que tem quatro irmãs e cinco irmãos, toda a vida estiveram ligados ao gado e ao queijo, embora não o produzissem.
Era bastante habitual na Beira Baixa (e ainda é), algumas famílias comprarem os queijos para os curar e os revender. “É com muita saudade que recordo esses tempos. Íamos pelas quintas recolher os queijos aos produtores, os lavradores que faziam o queijo e nós íamos recolhê-lo aos oito dias, depois fazíamos a cura em nossa casa, na ‘loja’.
Se recuarmos mais ainda no tempo, nos anos 60 o meu pai mandava pelo comboio caixas, daquelas de madeira, de queijo fresco, com três, quatro dias, para Lisboa. Depois lá em Lisboa havia quem tratasse da distribuição. A outra parte do queijo ficava cá para fazer o curado”. A arte de curar o queijo, recorda, é quase tão importante como a arte de o fazer.
Na região, chama-se a isso “afinar o queijo”, dando-lhe as características que o tornam único.
Joaquim sempre julgou que, tal como os seus pais, viveria toda a sua vida no campo, mas esta pregou-lhe uma partida, como a tantos e tantos portugueses que procuraram na emigração a proverbial “vida melhor”, que é o primeiro mandamento da diáspora. Nessa altura, o segundo era ter uma “carta de trabalho”. Nessa altura, Joaquim vinha muitas vezes à terra. “Tinha conhecido esta gaiata e começámos namorico, vá… digamos assim”. Numa dessas vezes, casaram. Na Soalheira permaneceram quase um ano. “Mas, quando a carta de trabalho em França estava quase a acabar, decidimos ir os dois para França. O nosso filho, o Nuno, tinha então um ano, deixámo-lo entregue à minha sogra. Viemos buscar o miúdo passados dois meses. E acabámos por ficar lá seis anos, perto da cidade de Clermont-Ferrand. Tivemos de arranjar patrão, claro”.
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Os seis anos, normalmente, é aquela fronteira entre ficar ou voltar. No total, Joaquim já levava quase uma década de emigração. “A vontade de voltar era muita, mas lá a vida não era tão pobre como aqui. Íamos ganhando o nosso dinheirinho, a amealhar para fazer a nossa casita cá, e a vida ia seguindo”.
E a vida quase ficava lá. “O Nuno tinha começado a estudar lá, já tinha os seus amigos. Até que vimos uma casa à venda e ainda pensámos duas vezes”.
Em solteiro, recorda Joaquim, “trabalhava numa fábrica de bobines de madeira para enrolar os cabos eléctricos, depois um ou dois meses numa fábrica de fazer rolhas de plástico, depois num hotel como guarda nocturno”. Como casal, “trabalhámos os dois num matadouro de frangos.
Todos os dias, pegávamos às quatro da manhã. No Verão, imagine, tínhamos de nos deitar ainda com sol para nos levantarmos às três e dez da manhã para ir trabalhar. O contra que tinha era esse. De resto, o trabalho fazia-se bem”. Nessa fábrica, o trabalho consistia em matar 15 a 20 mil frangos por dia.
A vantagem de começar cedo é que acabava cedo também, embora não fosse para descansar. “Tínhamos outros trabalhos-extra para ganhar mais uns cobres, como se dizia. A nossa intenção era juntar dinheiro para voltar, mas sabia-se lá as voltas que a vida dava”.
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Até que um dia, com o sonho de arranjar um emprego que lhes permitisse levar uma vida descansada, fizeram as malas e regressaram às origens, onde tudo estava como dantes. Os pais continuavam a negociar gado e a curar o queijo. A diferença é que estavam mais velhos.
“Foi o meu pai que me disse: ´arranjar um emprego… arranjar um emprego para andar a trabalhar para os outros`. Os meus irmãos já estavam a trabalhar para eles, independentes. O meu pai influenciou-me a trabalhar com ele e eu aceitei. Ele já estava com 64 anos.
Quando se reformasse ficava eu com o negócio dos animais”. Era o pai que recolhia os queijos pelos arredores, mas era a mãe que tratava da cura, “na palha, no chão, como se fazia. A minha mãe depois vendia os queijos no mercado do Fundão”. Nessa altura, Joaquim ainda não tinha em mente fazer do queijo um negócio.
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A vida, porém, tinha os seus secretos planos. “Só estive de ´meias` (sociedade) com o meu pai quatro meses. Ele teve um acidente e infelizmente faleceu”. Joaquim continuou a trabalhar sozinho no negócio do gado, mas não deixou de fazer o que o seu pai fazia: “Ia aos montes buscar os queijos para a minha mãe curar”.
Os irmãos, que trabalhavam já em sociedade, propuseram-lhe juntar-se os três no negócio do gado, pois não fazia sentido serem concorrência uns para os outros. E assim passaram a formar uma sociedade de três, sendo que no negócio do queijo eram quatro, incluindo a mãe. “A coisa não correu assim muito bem.
Cada um seguiu o seu caminho. Os dois irmãos já tinham cada um a sua queijaria. “Eu continuei o negócio do gado por conta própria, continuando o do queijo com a minha mãe, que pouco mais tarde acabou por desistir, até porque já tinha uma certa idade”.
O saber acumulado da cura do queijo foi a herança da sua mãe. Em 1983, Joaquim e Maria José fundaram a Queijaria Quinta do Pomar, na parte de baixo da sua casa. Quando crescemos um bocadito as vendas, fiz umas instalações atrás da casa”. Nessa altura, as queijarias eram mais artesanais e menos industriais. Não havia propriamente fábricas de queijos. Nunca tiveram rebanho, se não “umas ovelhas para fazer jardinagem”. As circunstâncias e as novas leis quanto à legalização das queijarias e à venda do leite dos produtores levaram com que houvesse uma mudança no negócio, aqui como no país. Joaquim e Maria José falam por eles: “Foi nesse momento que começámos a comprar o leite aos produtores locais, num raio de 10 a 15 quilómetros da Soalheira, como ainda hoje se faz”. Essa função era Joaquim quem a cumpria, levando o filho com ele, como o seu pai fazia consigo por esses montes fora, para comprar os queijos em vez do leite para os produzir. A produção do queijo era um novo mundo, que exigia muito tempo e igual dedicação.
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O negócio do gado passou às memórias de família. O negócio e a fama dos seus queijos cresceu a olhos vistos.
Em Junho de 2015, a Quinta do Pomar inaugurava a queijaria que hoje se conhece, com o que de mais moderno há para a produção de queijo, actualmente com 12 empregados, produzindo uma média diária de meio milhar de queijos, sendo que destes perto de duas centenas são do ovelha amanteigado, o melhor queijo do mundo.
O negócio é hoje multimilionário, mas tal não seria possível sem se manter o espírito familiar da empresa e os métodos tradicionais. A Queijaria Quinta do Pomar tem as portas abertas, mas com os segredos que distinguem os seus dos outros queijos bem guardados.
Os segredos do queijo
Não são propriamente segredos de Estado, embora nem todos se possam explicar, como se fosse uma ciência exacta. Não é possível explicar os ensinamentos que passam de geração em geração, pois estes não passam a papel químico.
Estes saberes são como património imaterial das famílias, da região. Nuno Alves, de 48 anos, é agora quem está à frente do negócio. Joaquim e Maria José preferem ficar “na sombra”.
Nuno não tem qualquer talento (nem quer) para relações públicas, deixa isso para a Sonia, a sua mulher que, desde 2002, quando se casaram, trabalha na queijaria e tem a história da família na ponta da língua, com o sotaque castelhano.
Por estes dias, com o prémio do melhor queijo do mundo, o cansaço faz-se sentir. Paula, que toda a vida trabalhou em queijos, já não vê a hora de chegar a casa. Ainda assim, mantém o sorriso intacto, para dizer: “há pessoas que acham que os queijos são caros. Deviam ver o trabalho que isto dá”.
Sonia acena com a cabeça, concordando. “É desde as cinco da manhã até às tantas da noite”. E aproveita para explicar que o seu marido sai de casa ainda mais cedo para um périplo pelos produtores de leite da serra da Gardunha.
“Ele tem um olho e um faro especial e muito apurado para perceber qual é o melhor leite, porque o melhor leite faz os melhores queijos. Ele faz questão de fazer este trabalho pessoalmente, porque ele gosta”. No total são uns 15, 16 produtores de leite. “É um pouquito aqui, outro pouquito ali”, conta Sonia.
No caso do melhor queijo do mundo, em geral utiliza-se o leite das ovelha bordaleira ou “churra” mondegueira. O leite, de cabra ou de ovelha, não é o único segredo do queijo que aqui se produz. É preciso ter a “mão de sal”. A cura, claro, é outra fase fundamental.
E, nisto, a família tem longa história, embora não tão longa como a utilização da flor do cardo no fabrico do queijo, que já era referenciada por Júlio Lúcio Moderato, escritor romano, contemporâneo e amigo de Séneca, que ficou conhecido como Cumello e pelos seus tratados de agronomia (”De Re Rustica”), que mantêm uma magnífica actualidade.
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Há que saber primeiro colher a flor do cardo, para depois executar a extracção, para depois macerar o extracto com sal e água, coado com leite morno, utilizando um coador de pano. A flor do cardo, para além de ser um excelente coagulante na produção do queijo, tem igualmente compostos antioxidantes, para além de conferir ao queijo um travo distinto, que os apreciadores (e não são poucos) sabem reconhecer. O cardo está na essência do queijo que se produz na região.
O melhor queijo do mundo já há muito tempo que encontrou os caminhos do Luxemburgo. “Todos os anos, às vezes mais do que uma vez, passa aqui um senhor a comprar muitos queijos para levar para o Luxemburgo. Chegando lá, ele vende-os de lugar em lugar”, recorda Joaquim Duarte Alves.
De qualquer maneira, acrescenta Sonia, “já temos aqui pedidos para exportar para o Luxemburgo, assim como França, veja lá, e até para os Estados Unidos da América”. Por alguma razão o melhor queijo do mundo é feito na Soalheira. Por alguma razão a Câmara Municipal do Fundão passou a promover a Feira do Queijo da Soalheira, na Soalheira. Por alguma razão lá está a placa a assinalar: Cheese Route. Lá chegando, não há que enganar.