O mercado mundial de lácteos é uma rede complexa de regras, acordos e restrições que buscam equilibrar os interesses de produtores, processadores e consumidores.
Um exemplo notável é o sistema de gestão da oferta implementado pelo Canadá na década de 1970, um modelo que despertou admiração e críticas em igual medida.
Esse sistema poderia oferecer valiosas lições para o Brasil, um país com uma estrutura láctea robusta, mas que enfrenta desafios próprios em termos de competitividade e sustentabilidade.
O modelo do Canadá: estabilidade e críticas
No início dos anos 70, o Canadá implementou um sistema de gestão da oferta para garantir um fornecimento constante de produtos lácteos de alta qualidade, preços estáveis e retornos econômicos adequados para os produtores.
O sistema também regula as importações por meio de contingentes tarifários, que impõem altos impostos sobre produtos que excedem certos volumes.
Em alguns casos, como o da manteiga, essas tarifas podem chegar a até 300%. Embora essa abordagem proteja os produtores locais, também gerou críticas, incluindo acusações de desperdício massivo de leite. Nos últimos 10 anos, estima-se que 6,8 bilhões de litros tenham sido descartados devido a excedentes de produção.
Brasil frente ao modelo canadense
No Brasil, o mercado lácteo é regido por uma dinâmica diferente, embora também enfrente tensões entre produtores e importadores. A ausência de um sistema de cotas como o canadense permite maior flexibilidade na produção, mas também expõe os agricultores a flutuações de preços e à concorrência das importações, especialmente da Argentina e do Uruguai.
Aqui surge a pergunta: seria viável implementar um sistema semelhante ao canadense no Brasil? Embora o contexto econômico e social seja diferente, algumas medidas poderiam ser adaptadas para estabilizar o mercado e reduzir a vulnerabilidade dos produtores.
Por exemplo, a regulamentação das importações no Canadá oferece um ponto de comparação interessante. Entre janeiro e novembro de 2024, o Canadá importou 147.000 toneladas de sólidos lácteos, principalmente queijos, mantendo esses volumes sob controle com altas tarifas.
No Brasil, uma medida semelhante poderia proteger os produtores locais, mas também poderia impactar negativamente a acessibilidade para os consumidores.
Reflexões globais: um mercado livre de regras?
Leo Bertozzi, engenheiro agrônomo e especialista em gestão agroalimentar, reflete: “O livre mercado é uma utopia, e tudo depende do tamanho das regras para administrá-lo”. Essa afirmação ressalta que, mesmo em mercados aparentemente livres, sempre existem mecanismos de regulamentação.
Por exemplo, a Índia regula fortemente seu mercado para proteger os produtores nacionais, enquanto na Austrália e na Nova Zelândia, as regulamentações ambientais também desempenham um papel importante.
Nos Estados Unidos, as ameaças de impor tarifas ou os incentivos fiscais também são formas de intervenção. Na União Europeia, os acordos interprofissionais e a Política Agrícola Comum (PAC) buscam harmonizar preços e proteger os agricultores.
Para o Brasil, entender essas dinâmicas pode ser fundamental para encontrar um equilíbrio adequado entre regulamentação e competitividade. Por exemplo, acordos internacionais e a harmonização de preços poderiam fortalecer o setor lácteo sem restringir excessivamente o mercado.
Lições para o setor brasileiro
- Estabilidade do mercado: Um sistema de cotas adaptado poderia ajudar a estabilizar os preços e garantir receitas mais previsíveis para os produtores.
- Redução de desperdícios: As lições do Canadá sobre o manejo do excesso de produção poderiam inspirar iniciativas locais para evitar o desperdício de leite no Brasil.
- Regulamentação de importações: Implementar mecanismos que controlem as importações poderia fortalecer os produtores nacionais, embora exigisse um equilíbrio cuidadoso para não prejudicar os consumidores.
O caso do Canadá mostra que não existe um mercado verdadeiramente livre de regras. Cada país adapta suas políticas para proteger seus produtores e garantir um fornecimento constante de alimentos.
No Brasil, onde o mercado lácteo enfrenta pressões internas e externas, refletir sobre modelos como o canadense poderia oferecer novas perspectivas para melhorar a competitividade e a sustentabilidade do setor.
Fonte: Artigo compartilhado por Ester Venturelli, analista de alimentação animal na CLAL Srl, Módena, Itália.