A discussão sobre leite adulterado voltou ao centro do debate jurídico depois que a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu, de forma unânime, afastar a responsabilidade de uma empresa contratada exclusivamente para realizar o transporte do produto.
A decisão, relatada pelo ministro Antonio Carlos Ferreira, altera o entendimento firmado nas instâncias inferiores e redefine os limites da responsabilidade objetiva na cadeia de consumo. O julgamento foi acompanhado de perto por representantes do setor lácteo e por especialistas em direito do consumidor.
O caso teve origem no Rio Grande do Sul, quando o Ministério Público estadual ajuizou ação coletiva de consumo para responsabilizar uma transportadora pelo deslocamento de leite cru posteriormente identificado como adulterado. Em decisões anteriores, os juízes haviam condenado a empresa ao pagamento de indenização por danos morais coletivos, sob o argumento de que todos os integrantes da cadeia de fornecimento responderiam solidariamente pelos vícios do produto. A transportadora recorreu, sustentando que exercia apenas serviço logístico, sem qualquer participação na fraude, sem ingerência no produto e sem qualquer ganho econômico vinculado à qualidade do leite transportado.
No voto que orientou o colegiado, o ministro Antonio Carlos Ferreira acolheu integralmente os argumentos da defesa. Segundo ele, o serviço prestado pela empresa não apresentava defeitos e a adulteração do leite constituía um “vício intrínseco ao produto”, totalmente desvinculado da atividade logística. O magistrado apontou que, ausente o nexo causal entre o transporte e o dano experimentado pelos consumidores, não é possível reconhecer responsabilidade objetiva.
O relator também destacou que o Código de Defesa do Consumidor (CDC) não admite a expansão ilimitada da responsabilidade solidária, devendo essa interpretação observar estritamente os limites legais. Ele esclareceu que a transportadora não era parte funcional da cadeia de consumo, pois sua atividade era restrita ao deslocamento físico do produto entre agentes econômicos. A remuneração por quilômetro rodado, segundo o ministro, reforça a ausência de qualquer benefício econômico relacionado ao conteúdo transportado, o que evidencia seu papel periférico na dinâmica comercial.
Em determinado momento do voto, o ministro Antonio Carlos Ferreira alertou para os riscos de se ampliar o conceito de fornecedor de forma indiscriminada. Segundo ele, se toda relação econômica indireta fosse considerada suficiente para configurar responsabilidade solidária, empresas de publicidade, limpeza, consultoria ou manutenção poderiam ser responsabilizadas por vícios de produtos que nunca manipularam. Essa interpretação, na visão do relator, criaria um ambiente de insegurança jurídica e distorceria a aplicação do CDC.
A decisão também invalidou, por consequência, o recurso especial apresentado pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul, que buscava aumentar o valor da indenização previamente fixada nas instâncias ordinárias. Com a improcedência da ação coletiva, o pedido perdeu objeto. A Quarta Turma reforçou que, embora o consumidor mereça proteção intensa, essa proteção não pode ultrapassar o razoável nem transformar agentes laterais da cadeia produtiva em responsáveis por defeitos sobre os quais não exercem qualquer controle.
Operadores do direito ouvidos pela reportagem avaliam que a decisão tem potencial para balizar novos casos envolvendo transporte de produtos alimentícios e outras mercadorias sensíveis. Para eles, o entendimento delimita com mais precisão a fronteira entre responsabilidade do fornecedor e a mera execução de um serviço auxiliar. Já profissionais do setor lácteo afirmam que o julgamento ajuda a esclarecer o papel dos transportadores, embora, na prática, a rastreabilidade da cadeia continue sendo fundamental para assegurar qualidade e confiança ao consumidor.
Ao final, o precedente estabelecido pela Quarta Turma reafirma que a responsabilização em casos de leite adulterado exige demonstração concreta de participação, vantagem ou ingerência do agente sobre o produto. A simples execução do transporte, quando realizada sem falhas e sem envolvimento na fraude, não é suficiente para caracterizar responsabilidade solidária.
*Escrito para o eDairyNews, com informações de LEX EDITORA






