Estatísticas da Emater apontam para o crescimento do número de produtores que entregam leite a indústrias e cooperativas em Hulha Negra, na região da Campanha Gaúcha.
O aumento é estimulado por fatores climáticos e sociais, geralmente associados à retração do setor. E um dos destaques dessa bacia leiteira, na última década, fica por conta da atuação de agroindústrias que agregam valor com a produção de derivados.
O setor mobilizava, há dez anos, 455 produtores entregando leite e 196 produzindo apenas para consumo próprio em Hulha Negra.
Mas, em 2024, representando pouco mais de 5,5% da arrecadação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) do município, com uma produção de 11.487.402 litros, de acordo com o mais recente relatório sobre a cadeia produtiva do leite, elaborado pelo escritório local da Emater, a bacia leiteira já era composta por 512 produtores que entregam leite e 170 que produzem apenas para consumo familiar.
Dois fatores ajudam a explicar o crescimento da bacia leiteira local. O primeiro corresponde às perdas provocadas pelo clima.
No período, foram registradas quatro ocorrências de estiagens, representando 26,6% dos eventos climáticos que levaram a situações de emergência. O prejuízo com a seca em dez anos, porém, foi de R$ 127,3 milhões, mais de 86,2% das perdas totais contabilizadas no intervalo.
Para o engenheiro agrônomo Alex Sandro Dutra de Oliveira, do escritório da Emater no município, o setor voltou a crescer principalmente por conta das frustrações de safras agrícolas nos últimos anos. “Alguns produtores estão migrando novamente para a produção leiteira, que, mesmo sendo mais trabalhosa, é a fonte de renda mensal e mantém as pequenas contas da família em dia”, avalia.
Oliveira define o contexto como um momento de restabelecimento da pecuária leiteira, que pode ser notado pela retomada de novos créditos agrícolas, tanto de custeio como de investimento no setor. O principal desafio da produção leiteira, ainda de acordo com o engenheiro agrônomo, é a produção de alimento para o gado.
“Estamos buscando incentivar a produção de inverno para o produtor ter alimentação armazenada para o verão, principalmente para os períodos de estiagem”, pontua.
O cenário de retorno à atividade envolve, ainda, um segundo fator, representado por investimentos no processamento do leite. Em março deste ano, a Prefeitura de Hulha Negra entregou a licença ambiental de operação para a Cooperativa Central Gaúcha Ltda (CCGL), a primeira grande unidade instalada no município, que pode gerar até 100 empregos diretos, movimentando a cadeia produtiva, da produção até o comércio e serviços.
A produção local, porém, também ganha impulso no campo do processamento com uma rede de pequenas estruturas familiares.
Festa impulsionou setor no município
Englobando as atividades de transformação de produtos agrícolas, pecuários, florestais ou aquícolas em bens industrializados, uma agroindústria agrega valor à produção primária por meio do processamento e beneficiamento de produtos.
Mas a criação de uma unidade produtiva do gênero precisa atender a uma série de exigências legais, que variam de acordo com o tipo e o porte da produção, o produto final e o local onde será instalada. No caso do setor lácteo de Hulha Negra, a instalação de agroindústrias foi impulsionada pela Festa do Colono.
À frente da Pampalac, Janete Raddatz explica que sua produção iniciou para atender a uma demanda do principal evento do calendário oficial do município, que tem como foco a valorização da cultura local, incluindo a culinária. “Fomos desafiados a produzir queijo.
intenção era apenas participar da festa, promovendo a comercialização. A ideia de construir uma agroindústria veio um pouco depois, como uma alternativa de renda”, explica.
Depois de participar da Festa do Colono, a família Raddatz, que já tinha um tambo, conheceu modelos de processamento desenvolvidos na Serra Gaúcha, através da Emater, inaugurando a Pampalac em maio de 2018. “Investimos na agroindústria para agregar valor à produção do leite e, em alguns anos, já alcançamos bons resultados”, pontua.
A produção da Pampalac agora também é estimulada por mercados institucionais, que garantem a comercialização por meio de sistemas que conectam agricultores familiares a instituições públicas, a exemplo do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).
Criado para garantir alimentação saudável aos estudantes da rede pública, o PNAE exige que pelo menos 30% dos recursos repassados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) sejam usados na compra de produtos da agricultura familiar.
Neste contexto, o carro-chefe da produção da família Raddatz é o iogurte, entregue a escolas de Aceguá, Bagé e Candiota, além de unidades militares instaladas em Bagé. Mas a agroindústria também produz queijo, queijo coalho, tradicional e temperado, queijo colonial, colonial com salame, além do tipo minas frescal, com tempero e sem tempero.
Tudo, de acordo com Janete, é feito de maneira artesanal, na própria propriedade, distante mais de 40 quilômetros da sede de Hulha Negra. “A gente produz a própria matéria-prima, o que garante um bom produto final.
Colocamos os rótulos, tiramos as notas e fazemos as entregas. Hoje, o que também me faz continuar com a atividade é a atuação da minha filha, Gisele, que havia mudado para a cidade e retornou para trabalhar na produção. A agroindústria representa sua permanência no campo, com trabalho e renda, envolvendo toda a nossa família”, enfatiza.
Independência financeira
Despertar o interesse dos jovens pela vida no campo é um dos desafios para garantir a sucessão. E o caminho encontrado pela família Zago passa pelo processamento do leite em uma agroindústria, que também representa alternativa para geração de renda.
A ideia de instalar a agroindústria Zago surgiu após Zair, marido de Sueli Zago, que coordena as atividades, sofrer um acidente. A operação da Agroindústria Zago, que iniciou durante a pandemia de Covid-19, hoje envolve Millena e Dayza Mirella Zago. E a produção tem como foco a oferta em feiras e eventos.
O primeiro reflexo foi percebido na produção de leite, iniciada em 2006, em quantidade apenas para consumo próprio, quando alcançava médias diárias de 20 litros. Hoje, são produzidos cerca de 300 litros diariamente na propriedade de 42 hectares, com foco na produção de derivados que já rendeu prêmio na Expointer, em 2024, na categoria Queijo Colonial.
A produção de queijos, doce de leite e requeijão é igualmente encarada pela família Zago como uma forma de garantir a permanência dos filhos no meio rural. Milena, que é formada em Agronomia, optou por continuar trabalhando na propriedade, atuando com Dayza na comercialização dos produtos.
As condições de deslocamento representam demandas pontuais das agroindústrias, o que inclui a unidade da família Zago. Em dez anos, de acordo com dados do Sistema Integrado de Informações Sobre Desastres (SIID), Hulha Negra contabilizou R$ 33,4 milhões em prejuízos com a infraestrutura, o que inclui estragos em estradas e pontes.
O cenário reflete no transporte, etapa importante da comercialização dos produtos da Agroindústria Zago, que organizou sistemas de entrega quinzenais, empregando um furgão frigorífico próprio.
Sueli destaca que, com os investimentos no setor, mais do que agregar valor à produção de leite e viabilizar a permanência dos filhos no campo, a agroindústria garante a independência financeira, enfatizando o protagonismo feminino. “Hoje geramos trabalho e renda para as mulheres da família, no campo, no contexto em que antes dependíamos do marido”, avalia.
Identidade reconhecida
Além de contribuir para a segurança alimentar, a fiscalização sanitária das agroindústrias garante o acesso a diferentes mercados. Através da atuação do Serviço de Inspeção Municipal (SIM), a produção pode ser comercializada em âmbito local.
A inspeção do Sistema Unificado Estadual de Sanidade Agroindustrial Familiar, Artesanal e de Pequeno Porte (Susaf) permite a comercialização em todo o estado. E para alcançar a circulação nacional, uma agroindústria pode buscar a qualificação do Selo Arte, conferido à Queijaria Tambero.
Concedido pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), o Selo Arte, além de permitir a comercialização interestadual, atesta a produção artesanal de alimentos de origem animal.
“Reconhece a identidade dos produtos, um modo de fazer, respeitando tradições locais”, explica Luísa Brasil, proprietária da Tambero, primeira agroindústria de Hulha Negra a contar com a certificação.
Para alcançar o Selo Arte, conferido aos queijos Coxilha (com no mínimo três meses de maturação e casca formada por fungos naturais da região) e Geada (mais jovem, com fungos brancos), a Tambero desenvolveu um modelo de rastreamento total do produto.
“Temos conhecimento de todo o processo, do que a vaca está comendo, o que garante uma matéria-prima de qualidade, até o perfil de quem vai consumir nossa produção”, explica.
A mão-de-obra está entre os desafios para o crescimento das agroindústrias de Hulha Negra, que contam com uma associação para equacionar outra demanda. “A união é de suma importância. A partir dela, vamos reativar o centro de comercialização (no trevo de acesso à cidade).
É a associação (que também reúne agroindústrias de outros setores) que nos dá força política para movimentar o mercado”, define Luísa.