Nos últimos dias, o debate sobre as importações de leite em pó argentino e uruguaio ganhou força no Brasil, impulsionado por declarações da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e de parlamentares que associam essas compras externas à crise da pecuária leiteira nacional.
👉 O argumento central: haveria dumping — ou seja, exportação a preços inferiores ao valor praticado no mercado interno de origem — prejudicando o produtor brasileiro.
✋ No entanto, a decisão preliminar do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) foi clara: não há evidências consistentes que justifiquem a aplicação de direitos antidumping provisórios contra esses fornecedores do Mercosul.
O que dizem os números
De acordo com dados do ComexStat e da PPM/IBGE, em 2023 as importações de leite em pó da Argentina e do Uruguai representaram cerca de 4,4% do volume total de leite produzido no Brasil.
Um percentual insuficiente para determinar preços ou exercer poder de mercado relevante.
O mercado interno brasileiro, mesmo com esse fluxo, pagou em 2023 um dos maiores preços ao produtor da América Latina, superando inclusive a média registrada na Argentina e no Uruguai, segundo o ICPLeite da Embrapa. Isso desmonta a tese de que o produto importado tenha deprimido o preço pago ao produtor nacional.
Função estratégica do leite em pó
O leite em pó importado não concorre diretamente com o leite in natura destinado ao consumo fresco. Seu uso é majoritariamente industrial — na formulação de chocolates, biscoitos, produtos lácteos compostos e alimentos processados.
Em um país de dimensões continentais e forte sazonalidade produtiva, essas importações funcionam como válvula de segurança para a indústria, especialmente em períodos de entressafra ou quebra de produção.
A queda na produção brasileira em 2022, por exemplo, foi anterior ao aumento das importações e decorreu, sobretudo, de estiagens severas no Sul e de uma escalada de custos de energia, ração e fertilizantes, agravada pelo conflito Rússia–Ucrânia.
As causas reais da perda de competitividade
O Anuário do Leite 2024 da Embrapa lista dez desafios estruturais à competitividade do leite brasileiro, e nenhum deles está relacionado às importações: baixa escala e produtividade média, qualidade irregular, custos logísticos elevados, fragmentação da captação e industrialização, distorções tributárias e baixa adoção de tecnologia, entre outros.
Sem enfrentar esses gargalos, o setor permanecerá vulnerável, independentemente do fluxo comercial com parceiros do Mercosul.
A reação política
Na reunião de 13 de agosto, a CNA e parlamentares pediram ao MDIC a revisão da decisão preliminar, defendendo a tese de similaridade entre leite in natura e leite em pó e sustentando que as importações “prejudicam a cadeia produtiva”.
O ministério, no entanto, reforçou que segue aberto a receber dados técnicos, mas baseará qualquer decisão final em evidências objetivas.
O que mostram as gôndolas
As prateleiras de supermercados brasileiros contam com marcas argentinas como La Serenísima e Portofino, presentes em leites em pó, queijos e doce de leite.
Isso evidencia que, longe de serem ameaça sistêmica, essas importações se inserem em um mercado diversificado, que atende nichos e complementa a oferta interna — sem desabastecer produtores nacionais de espaço ou demanda.
(Fotos: produtos argentinos em supermercados do interior de São Paulo)
A pauta que realmente importa
Transformar parceiros comerciais em adversários e concentrar esforços políticos em medidas protecionistas frágeis desvia o foco do que realmente pode fortalecer a pecuária leiteira brasileira: ganhos de escala, eficiência, qualidade, inovação, infraestrutura e integração cooperativa.
As importações de leite em pó, quando bem reguladas e monitoradas, não são vilãs — mas sim aliadas discretas de um abastecimento estável e competitivo. O desafio central é interno, e o avanço dependerá de enfrentar as barreiras estruturais que limitam o potencial do setor.
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