DOIS TRABALHADORES foram resgatados de situação análoga à de escravo em uma fazenda que fornecia leite para a Laticínios Tirol. A companhia cortou o produtor de seus fornecedores após saber do caso por meio da Repórter Brasil.
A operação de fiscalização ocorreu em setembro de 2024, no município de Manoel Ribas (PR), na propriedade de Osmair Marcelino, a Fazenda São João. Um dos resgatados vivia há cerca de 20 anos na fazenda e não recebia salário, afirmaram os auditores.
Ele recebia doações da família como cestas básicas, colchões e objetos para casa. As informações constam no relatório da inspeção.
O trabalhador dormia no chão sobre um colchonete velho. A casa de madeira tinha piso com buracos, fiação elétrica exposta e telhado sem manutenção.
A água para consumo era captada de um córrego por uma mangueira que passava ao lado de um cano de esgoto com vazamento.
O segundo trabalhador resgatado também atuava na propriedade sem contrato formal e trabalhava aplicando agrotóxicos e roçando pasto sem EPI (Equipamentos de Proteção Individual), de acordo com o relatório de fiscalização.
Nenhum dos dois trabalhadores recebeu férias e décimo terceiro, apontaram os auditores.
Além de não receber salário, um dos resgatados relatou que devia R$ 1.200 ao dono da fazenda. Segundo ele, o valor era referente a gás, internet e ração de porcos.
As anotações eram feitas em uma caderneta que estaria de posse do proprietário. O MTE entendeu que a situação caracterizava servidão por dívida, um dos elementos que configura trabalho escravo no Brasil, segundo a legislação.
O proprietário da fazenda assinou um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) com o Ministério Público do Trabalho. As rescisões devidas somaram R$ 120 mil. A Repórter Brasil procurou o fazendeiro e seu representante legal para comentar o caso, mas nenhum se pronunciou até o fechamento desta reportagem.
O espaço segue disponível para futuras manifestações.
Empresa bloqueou fornecedor
Além da marca Tirol, a empresa de laticínios também tem a concessão da marca de leite Paulista. Em março de 2025, a empresa foi apontada como a terceira marca de leite mais vendida no Brasil, segundo ranking da revista Super Varejo, da APAS (Associação Paulista de Supermercados).
A empresa também produz e comercializa com marca própria iogurtes, requeijão, queijos, bebidas lácteas e creme de leite.
Após ser questionada pela Repórter Brasil, a Tirol afirmou ter bloqueado permanentemente a fazenda da lista de fornecedores. A empresa afirmou que não tinha conhecimento do caso antes de ser procurada pela reportagem.
“No mesmo momento que a reportagem chegou até a empresa, imediatamente incluímos o nome da propriedade e do produtor em suspensão dos nossos cadastros de captação de matéria-prima”, informou. A empresa destacou ainda que não possui produtores integrados e nem propriedades rurais.
Na produção agrícola, os produtores integrados firmam contratos diretos com uma empresa do setor e recebem insumos e orientação técnica e, em troca, se comprometem a fornecer a produção e a seguir os padrões daquela companhia. A Tirol disse que o leite é comprado através de uma “relação comercial intermitente”.
A Tirol declarou ainda adotar “políticas rigorosas para garantir a integridade e legalidade em toda a sua cadeia de fornecimento”. Segundo a companhia, seus fornecedores “são submetidos a critérios técnicos, sanitários e legais” e a empresa publica “periodicamente um Relatório de Sustentabilidade, que reforça nossos compromissos com práticas sustentáveis e éticas”. O posicionamento completo da empresa pode ser lido aqui.
Trabalho escravo no setor leiteiro cresce no Brasil
Os casos de trabalho escravo na produção de leite são numericamente inferiores do que em outras cadeias do agronegócio, mas os dados revelam uma tendência de crescimento. As estatísticas são do Escravo, nem pensar!, programa nacional de prevenção ao trabalho escravo da Repórter Brasil, a partir de informações do MTE.
Desde 2009, quando houve o primeiro caso, foram registradas 59 ocorrências de trabalho escravo na produção de leite no Brasil, com 174 pessoas resgatadas.
O ano de 2024 foi o mais crítico da série histórica, com 9 ocorrências e 20 trabalhadores resgatados. Esse foi o maior número desde 2011, quando houve 7 casos e 43 resgatados. A partir de 2022, houve um aumento gradual no número de vítimas.
Minas Gerais (MG) e Pará (PA) concentram a maior parte das ocorrências desde 2009. O território mineiro responde por 34% dos casos e 25% dos resgatados (43 pessoas). Já o Pará, com 25% dos casos, concentra quase metade das vítimas: 75 trabalhadores, o equivalente a 43% do total nacional.
Também houve registros em estados como Maranhão, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Alagoas e Acre.