O leite é um dos produtos agropecuários mais importantes em todo o mundo, sendo que a indústria de laticínios no país movimenta muitos recursos.
Por se tratar de um meio de cultura ideal para o crescimento de microrganismos, é necessário um controle muito grande em todo o seu processo de produção, da ordenha ao armazenamento, para evitar a contaminação.
Mas e se um vírus for capaz de infectar justamente bactérias que podem comprometer a qualidade do leite e seus derivados?
Essa foi a descoberta feita por um grupo de pesquisadores das universidades federais de Juiz de Fora (UFJF), de Viçosa (UFV) e da Universidade de Córdoba (UNC), na Colômbia.
Financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig) e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a investigação propõe a aplicação de bacteriófagos – vírus que infectam bactérias – no controle de bactérias patogênicas e deteriorantes em alimentos. O estudo foi publicado no periódico Viruses, importante revista da área da Virologia.
O professor da Faculdade de Farmácia da UFJF, Humberto Húngaro, líder da pesquisa, explica que inicialmente foram isolados e caracterizados sete bacteriófagos de diferentes fontes, incluindo esgoto doméstico, efluentes de laticínios, água de córrego e rio.
Dois destes se mostraram promissores em atacar e combater bactérias deteriorantes de leite e derivados a partir dos experimentos realizados pela estudante de pós-graduação em Ciência e Tecnologia do Leite e Derivados, Edilane Cristina do Nascimento, orientada por Húngaro.
“Esses resultados nos levaram a realizar o sequenciamento e a análise dos genomas dos bacteriófagos em colaboração com os pesquisadores Pedro Marcus Vidigal, biólogo do Núcleo de Análise de Biomoléculas da UFV, e Maryoris Elisa Lopez, do Departamento de Engenharia de Alimentos da Universidade de Córdoba na Colômbia”, afirma.
O novo bacteriófago descoberto é capaz de atacar e combater especificamente Pseudomonas fluorescens, que contaminam e comprometem a qualidade do leite e seus derivados. “Essas bactérias causam problemas como gelificação em leite UHT, sabor amargo e desenvolvimento de coloração azulada em queijos, rancidez e outros problemas sensoriais em lácteos, levando a perdas econômicas consideráveis.”
Neste sentido, os bacteriófagos podem trazer grandes benefícios para o combate de bactérias em diferentes setores produtivos, como a agricultura, a saúde animal, a indústria de alimentos e a medicina.
“Uma vez caracterizado o potencial biotecnológico do novo bacteriófago, o passo seguinte foi usar as ferramentas da bioinformática para obter a sequência completa do seu genoma, identificar os genes e comparar os dados obtidos com outros genomas virais para determinarmos a espécie que estava sendo estudada”, detalha o biólogo Pedro Vidigal.
Reconhecimento de novo gênero
A partir das análises executadas, sobretudo no Núcleo de Análise de Biomoléculas da UFV, os pesquisadores perceberam que o genoma do bacteriófago UFJF_PfDIW6 era bastante diferente, exibindo menos de 5% de semelhança com genomas de outros bacteriófagos já descritos na literatura. A comparação foi feita com todas as sequências de genomas de bacteriófagos disponíveis no período em que a pesquisa foi realizada.
“Além disso, mais de 50% dos genes presentes no genoma desse bacteriófago codificam proteínas com funções ainda desconhecidas”, informa Húngaro.
Com isso, os resultados indicavam que se tratava de uma nova espécie de vírus ainda não descrita, o que levou os pesquisadores a propor ao Comitê Internacional de Taxonomia de Vírus (ICTV) a criação de um novo gênero denominado Purivirus, dentro da classe Caudoviricetes.
A escolha do nome Purivirus é uma homenagem aos povos originários do Brasil da etnia Purí, habitantes da região geográfica onde o bacteriófago foi identificado. “Essa atribuição é uma forma de reconhecimento da importância dos povos originários do Brasil e de Minas Gerais na conservação da biodiversidade em solo brasileiro”, afirma.
Colaboração interinstitucional e internacional
Os três autores da publicação fizeram pós-graduação na Universidade Federal de Viçosa, e desde então mantêm um vínculo de colaboração mútua em pesquisa.
Com os avanços científicos gerados por essa parceria e as perspectivas de novos projetos com bacteriófagos, foi instituído o Grupo de Investigação de Fagos (GIF), credenciado no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq.
“Este é o primeiro grupo de pesquisa internacional de fagos na América Latina e representa um grande desafio e oportunidade para trabalhar em conjunto”, defende Maryoris Elisa Lopez. Em sua opinião, o fortalecimento das relações entre os países irmãos, como Colômbia e Brasil, é muito importante, porque permite que se faça um caminho mais organizado.
As etapas do isolamento do vírus à caracterização do genoma foram realizadas em laboratórios de pesquisa da UFJF, sendo que o sequenciamento do material genético extraído foi feito por uma empresa terceirizada.
A organização dos dados do sequenciamento e a montagem do genoma dos bacteriófagos foram feitos a partir de ferramentas de bioinformática e da expertise dos pesquisadores colaboradores.