Quase meio século após a Nestlé sofrer os primeiros boicotes por publicidade de fórmula infantil abusiva sobre as mães, a prática continua - agora adaptada à era do algoritmo. É o que conclui uma pesquisa publicada na revista "Lancet".
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Diferenciar entre problemas com a amamentação e incapacidade de produzir leite suficiente é difícil para as novas mães
Fórmula Infantil |Quando Vernellia Randall virou mãe nos anos 1970 nos Estados Unidos, ela escolheu fazer algo radical, algo que − na época − parecia uma ruptura com as normas sociais: ela optou por amamentar seu bebê.

“Nos anos 70, pessoas em geral, enfermeiras, médicos e todos os anúncios me davam a impressão de que eu não estava sendo uma boa mãe ao escolher amamentar”, lembrou Randall em entrevista à DW.

Pesquisas sugerem que em 1971 apenas 10% das novas mães nos Estados Unidos amamentaram seus bebês por mais do que quatro meses. Randall, agora professora de direito aposentada, estava então na faculdade de enfermagem, era pobre e mãe solteira. Sua decisão foi clara − o leite materno era de graça.

Amamentação é barata e eficaz

Alguns anos depois, Randall passou a trabalhar como enfermeira. Ela sabia por seu treinamento e experiência pessoal que a amamentação era barata e eficaz. Mas o que ela viu no sistema de saúde parecia desafiar a lógica.

Randall disse que as novas mães muitas vezes recebiam um pacote grátis de fórmula infantil ao deixar o hospital. O suprimento cobre algumas semanas − tempo suficiente para que percam parte de sua capacidade natural de produzir leite.

A oferta de leite depende da demanda, portanto, se a criança não estiver mamando no peito, a produção de leite materno diminui. “Então, as mães não tinham escolha a não ser comprar a fórmula, mas, como eram pobres… elas a diluíam”, disse Randall. “O que mais poderiam fazer?”

Prática comum ao redor do mundo

A experiência de Randall está longe de ser um caso isolado − relatórios publicados no final dos anos 70 e 80 mostraram que práticas semelhantes estavam acontecendo em unidades de saúde em toda a Europa, nos Estados Unidos e, o que é mais alarmante, em países em desenvolvimento onde a grande maioria das mulheres não têm acesso a um suprimento constante de fórmula ou água limpa para prepará-la.

O conteúdo desses relatórios desencadeou boicotes globais contra a empresa de fórmulas infantis Nestlé e a publicação do Código Internacional de Marketing de Substitutos do Leite Materno pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1981. Era uma política de saúde global que buscava acabar com os tipos de práticas que Randall havia notado nas clínicas.

Mas o código – até hoje – raramente tem efeito jurídico vinculativo. Ele é visto principalmente como um conjunto de recomendações porque, em muitos países, não se tornou lei.

E, nos 40 anos desde que o código foi escrito, a indústria de fórmulas infantis cresceu de um valor de menos de US$ 2 bilhões para mais de US$ 55 bilhões, de acordo com um estudo publicado na revista científica The Lancet em fevereiro de 2023.

Também há mulheres que dependem das fórmulas infantis

A fórmula para bebês foi criada por um motivo. Algumas mulheres não conseguem amamentar. Existem várias razões para isso, mas os pesquisadores estimam que de 10% a 15% das mulheres são incapazes de produzir leite materno suficiente para alimentar seus bebês. Portanto, há uma necessidade legítima de fórmula para bebês.

O problema, dizem os pesquisadores na The Lancet, é que os fabricantes encontraram uma maneira de explorar o medo das mulheres com problemas como a baixa produção de leite materno − e em alguns casos até mesmo induzi-lo.

Segundo eles, isso leva algumas mulheres que poderiam estar amamentando a usar leite em pó para bebês.

Amamentar é difícil e as mulheres precisam de ajuda

A OMS recomenda que as mulheres que podem amamentar o façam pelo menos nos primeiros seis meses de vida do bebê. Mas estima que apenas cerca de 44% das crianças com menos de 6 meses são exclusivamente amamentadas em todo o mundo.

“É difícil amamentar”, disse Randall. “Você precisa de ajuda.”

Os pesquisadores que publicaram na The Lancet defendem políticas “em prol do bebê”: a amamentação, dizem eles, deve ser iniciada na primeira hora após o nascimento do bebê, quando ele deve ser colocado no seio da mãe.

As mães devem ser instruídas por médicos ou enfermeiras treinadas como amamentar e manter a lactação mesmo quando separadas de seus bebês. Bebês saudáveis não devem receber nenhum tipo de alimento ou bebida além do leite materno. E mãe e bebê devem ser mantidos juntos.

Estas práticas favorecem a criança, mas nem todos as maternidades as usam. “Em alguns hospitais, eles só devolvem o bebê para a mãe depois de 6 ou 12 horas”, disse um pediatra de um hospital público na Cidade do México em entrevista para um relatório da OMS de 2022 sobre publicidade de fórmulas infantis.

Quando isso acontece, a produção de leite pode se tornar difícil, tornando as mulheres menos propensas a querer amamentar, especialmente se não tiverem o apoio de outras mulheres – uma doula, parteira ou irmã, mãe ou amiga que já passou por isso antes.

O marketing das empresas de fórmula infantil

O relatório da OMS diz que as empresas de fórmulas usam algoritmos para identificar e anunciar para mães jovens, capitalizando o medo delas sobre se são capazes de produzir leite materno suficiente para seu recém-nascido.

Os pesquisadores que publicaram na The Lancet também dizem que algumas empresas de fórmulas enquadram os medos e inseguranças de uma pessoa como “patológicos” e promovem seus produtos como respostas para problemas que, em muitos casos, não existem.

Deixamos muitos rastros de dados pessoais na internet. O que publicamos nas redes sociais, fotos de nossos recém-nascidos, os sites que visitamos, a quantidade de tempo que passamos assistindo a vídeos do TikTok ou Instagram, as pesquisas que fizemos no Google e as palavras que usamos, como “bebê chorando a noite toda”, ou as lojas online que visitamos e o que compramos nelas.

Os anunciantes usam toda essa informação para alimentar sofisticados algoritmos de internet que visam novas mães. É o que dizem os pesquisadores.

Cerca de 50% das mães entrevistadas pelos pesquisadores da OMS relataram exposição a propagandas de fórmulas infantis, com os números mais altos na China (97%), Vietnã (92%) e Reino Unido (84%), mas também em países africanos.

“Anúncios vão me fazer comprar fórmula infantil”, disse uma mãe de Lagos, na Nigéria, a pesquisadores da OMS, “se eu vir um bebê lindo e gordinho na TV, bem alimentado e sorridente e houver um pacote de leite com todas as informações nutricionais detalhadas”.

Aplicativos exploram as preocupações de uma mãe

Algumas empresas oferecem aplicativos para pais que as novas mães podem usar para acompanhar os hábitos e a saúde de seus bebês e obter informações e conselhos.

O relatório da OMS mencionado diz que esses aplicativos exigem que as mulheres enviem uma quantidade significativa de informações pessoais − especificamente, os problemas e preocupações que estão tendo com a alimentação − que as empresas usam para direcionar mais produtos a elas.

Uma empresa, por exemplo, descreve seu aplicativo como sendo “para as mães entrarem em contato com outras mães acordadas a noite toda”, para que mães com um recém-nascido e que acordam às 3 da manhã, solitárias e entediadas, possam se conectar com outras mulheres com o mesmo problema e falar sobre suas experiências.

Mas tudo isso dá às empresas de fórmulas e aos anunciantes ainda mais informações pessoais sobre as novas mães e seus bebês – justamente quando estão mais suscetíveis.

Nenhuma das seis empresas que compõem a maior fatia do mercado global deste mercado – Abbott Nutrition, Danone, Feihe, Freisland Campina, Nestlé e Reckitt Benckiser – respondeu aos questionamentos da DW.

 

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