No apagar deste inverno o setor de leite e derivados vive três crises simultâneas.
A primeira crise vem das importações de lácteos do Mercosul, principalmente da Argentina. Estes produtos estão inundando o mercado interno, destruindo a organização da cadeia produtiva. Estamos vivenciando o fenômeno de maior volume de importação em todos os 32 anos de existência do Mercosul.
Tudo teve início no inverno do ano passado, quando os preços internos pagos aos produtores atingiram picos muito elevados, em função da escassez da oferta interna de leite. Esperava-se um volume de importação suficiente para regularizar preços e o abastecimento. Mas, o volume foi crescendo mês a mês e atingiu proporções inimagináveis.
O preço do leite pago aos produtores brasileiros é tradicionalmente superior ao preço praticado na Argentina, quando convertido em dólar, o que cria um atrativo natural para as importações. Isso não é novidade. O custo de produção do leite argentino é, em média, inferior ao custo de produção no Brasil e isso torna o leite do país vizinho muito competitivo, quando comparado com o nosso e com os países das três américas.
Mas, nos últimos dozes meses, a competitividade do leite argentino ficou mais robusta da porteira para fora. No país vizinho ocorre uma crise cambial imensa. A carência de dólares é tão grande, que empresas brasileiras como o Banco Itaú estão decidindo sair daquele mercado. Então, com dólar escasso e caro, e com peso argentino abundante e desvalorizado, os produtos e serviços argentinos estão com preços muito competitivos, do turismo ao leite. Estamos sendo parte da solução para a crise argentina, mas gerando a nossa crise.
A segunda das três crises refere-se a preços muito baixos no mercado internacional. Os preços atingiram patamares muito altos em fevereiro de 2022 e, a partir daí, começaram a cair continuamente. Desta vez, a queda não é explicada pelo excesso de oferta, mas pela escassez de demanda. E isso preocupa, muito!
O mercado internacional de lácteos sempre foi um dos mais protegidos do mundo. Os países têm mecanismos de estímulo à produção interna e criam dificuldades à importação. No passado, até pesados subsídios à exportação de excedente foram praticados pela União Europeia, como rotina. Isso criou a tradição de um mercado internacional pequeno e muito distorcido, com preços artificiais.
Este quadro começou a mudar neste milênio, por dois fatores. Pelo lado da oferta, a União Europeia decidiu focar na exportação de queijos com maior valor agregado, ao invés de leite em pó e manteiga. Pelo lado da demanda, a China passou a comprar vultosos volumes, crescentes, na medida em que a renda interna crescia velozmente. Isso redesenhou o mercado mundial de leite, com novas bases, mais previsível e com menos artificialismos, próximo ao comportamento de mercados de outras commodities agrícolas.
A China é o motor da economia mundial, há três décadas. Mas, as taxas elevadas de crescimento da sua economia começam a ser parte do passado. Isso impacta as importações de leite diretamente. Ademais, a China está fazendo uma veloz substituição de importação, estimulando a produção interna. O reflexo desta estratégia é que os chineses reduziram substancialmente a compra de leite no mercado internacional e os preços desabaram.
A terceira crise é de imagem. O ator global Márcio Garcia gravou, em estúdio profissional, um vídeo, contrário ao consumo de leite. Imagens agressivas e sua fala levam a entender que são práticas comuns. Não conheço nenhum engajamento deste ator em causas sociais. Desde a juventude até o presente, atua como garoto propaganda, já fez publicidade para laticínios e até para churrascaria. Cinquentão, no vídeo exibe invejáveis bíceps, que são melhor obtidos quando se ingere whey, um suplemento alimentar feito com soro de leite.
A rápida e espontânea reação de produtores e entidades do setor foi surpreendente e, em três dias, fizeram recuar ele e a ONG que patrocinou este vídeo e que aceita doações de pessoas jurídicas e físicas para defender o consumo de “leite vegetal”. Mas, feridas ficaram. Que lições podemos tirar das três crises?
Na crise de importação podemos aprender com os argentinos. Ainda nos anos oitenta eles criaram um planejamento de ações públicas e privadas para aumentar a eficiência dos produtores menores. Mas, isso somente dá resultado se for atividade contínua e de longo prazo. No curto prazo, é preciso negociar preços mínimos de importação com os argentinos e uruguaios.
Na crise de preços internacionais, é preciso retomar a alíquota de 42% de proteção em relação aos produtos importados, e que vigorou até 2019. Já na crise de imagem, o setor ganhou a batalha. Mas, é o início de uma guerra. O setor entrou na agenda de grupos que atuam de modo comercial ou emotivamente contrários ao leite. E, pelo visto, a viga mestre do ataque é a questão do bem-estar animal. Estejam certos, outras rodadas de agressão ao setor, certamente virão.
*Paulo do Carmo Martins é economista, com Doutorado em Economia Aplicada pela Esalq/USP, pesquisador da Embrapa e Professor da FACC/UFJF
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