“A inovação tem, sim, métodos e competências, mas seu poder acontece quando ela é bastante distribuída e ampla na organização.” Quem afirma é Priscila Freitas, que desde dezembro de 2023 ocupa o cargo de diretora de inovação da Nestlé.
Fundada há 158 anos na Suíça, a Nestlé é a maior empresa de alimentos e bebidas do mundo, com mais de 2 mil marcas e presença em 191 países. Instalou sua primeira fábrica no Brasil em 1921, de leite condensado; hoje, tem 31 unidades fabris em oito estados, gerando 20 mil empregos diretos e 200 mil indiretos.
A inovação corporativa, explica Priscila, é um dos pilares da área de Transformação do Negócio da Nestlé – que tem também os pilares de dados, produtos digitais, tecnologia da informação, indústria 4.0 e fábrica conectada, e ainda ESG.
Entre os desafios da companhia estão antecipar tendências de comportamento dos mais diversos grupos de consumidores; cumprir metas sociais e ambientais; e, claro, entregar crescimento de receita e lucro.
Formada em Comunicação Social com ênfase em Publicidade e Propaganda pela USP, e especializações em Semiótica, Psicologia Analítica e Design Thinking Ecológico, a paulistana Priscila chegou à Nestlé depois de passagens por Unilever, Natura e Lego.
Hoje, ela cuida de duas equipes. Uma delas, de inovação aberta, mantém uma rede de parcerias entre as áreas da companhia com outras empresas, startups, universidades e centros de pesquisa. A outra gerência busca novos modelos de negócios, serviços e experiências para adoção a médio e longo prazo.
A seguir, a executiva detalha essa estrutura de inovação, fala sobre iniciativas em andamento e comenta como a repercussão de seus lançamentos e de notícias (negativas, inclusive) envolvendo a companhia pode servir de combustível para novos projetos:
Você é mestre em Design Thinking Ecológico pela Schumacher College, uma escola de ensino superior referência em sustentabilidade. Como essa formação tem influência no teu trabalho como diretora de inovação da Nestlé?
A influência é total. Ao longo da minha carreira, sempre trabalhei com inovação e marketing.
Em algum momento, entendi que existia outra maneira de conduzir as nossas práticas, foi aí que eu fui buscar esse mestrado em Ecological Design Thinking, o pensamento do design a partir do conceito de Ecologia Profunda.
O que significa isso? Colocar o humano e as relações humanas inseridas dentro do contexto da natureza, uma visão de que não existe essa separação, civilização e natureza como duas coisas separadas. E isso exerce uma influência completa na minha visão de mundo e como pessoa de inovação
Aqui, dentro do meu trabalho, quando cheguei no time da Nestlé, eu encontrei uma companhia que tem um entrelaço muito grande com diversas das nossas cadeias produtivas, e que tem compromissos de ESG bastantes profundos, que vêm numa jornada crescente.
Então, a nossa busca é colocar os princípios do design e o olhar da inovação a serviço da melhora contínua dos nossos processos, como a gente amplia a qualidade das relações e do que é possível oferecer para os clientes da Nestlé, para os consumidores e as comunidades das quais participamos.
Isso significa que, na prática, diante de todo o problema que se apresenta, eu vou trazer para a rede de inovação uma lente da complexidade, das conexões, das relações, do pensamento sistêmico, porque a gente faz inovação aberta, participa de um ecossistema mais amplo do que a organização, a fim de buscar soluções que possam contribuir de uma forma transversal.
A crise climática está afetando as culturas de café e cacau, que têm uma grande importância no portfólio de produtos e no faturamento da Nestlé. Como é o trabalho de inovação nessa frente de agricultura e meio ambiente?
A gente vê inovação como uma capacidade do negócio. Apesar de eu estar numa posição de rede de inovação, e ter uma área de inovação hoje na companhia, todas as pessoas da Nestlé estão trabalhando com inovação para melhorar e fortalecer a nossa atuação de modo geral.
Temos programas bem robustos; posso citar o Cocoa Plan, um dos maiores programas de cacau sustentável do Brasil.
Ele utiliza ferramentas de geomonitoramento para garantir que não haja desmatamento nas áreas contempladas, oferece assistência técnica em fazendas verificadas e paga um valor adicional pelo cacau sustentável. Um chatbot no WhatsApp tira dúvidas técnicas sobre as fases de cultivo, condições climáticas, preço médio do cacau…
A gente tem o Nature for Ninho, que trabalha sustentabilidade na cadeia de leite. Diversas iniciativas em cafés, com as nossas áreas responsáveis, que apontam para o desenvolvimento técnico da agricultura com inclusão do pensamento de regeneração.
O que o meu time procura apoiar nesse sentido é a busca da conexão com o ecossistema ampliado, para trabalhar desafios-chave. A gente mapeia, junto com as áreas de negócio, quais são os desafios mais impactantes daquela cadeia [de valor], e aí busca e faz a conexão com o ecossistema de startups para viabilizar projetos pilotos, experimentos e oportunidades que tragam outras soluções.
Dentro desse contexto, lançamos um edital com o Senai, no final de 2023, em que estamos disponibilizando investimento de 5 milhões de reais para projetos de fomento em pesquisa nas áreas de agricultura regenerativa, com foco nas cadeias do cacau, leite e café, circularidade e energias renováveis
Essa é uma das muitas formas como tentamos buscar expertise fora e colocar os nossos investimentos como uma ferramenta. Na direção de ser um alavancador do fomento do desenvolvimento da solução. Normalmente, isso vai acontecer num piloto concreto, numa área de negócio.
Faz parte do nosso método que esses pilotos sejam remunerados adequadamente durante toda a sua construção, e a partir dessa pesquisa, a Nestlé adota soluções em escala, e isso nos ajuda a avançar de forma mais veloz na direção dos nossos compromissos de ESG. Tem boas interlocuções em pontos que são chave para os nossos compromissos.
Como isso se traduz na prática, por exemplo, em apoio aos fornecedores?
Em inovação aberta, temos o Panela, a plataforma da Nestlé para interlocução com o ecossistema de inovação — startups, universidades, polos de pesquisa.
Buscamos o desenho de um desafio, bem concebido, a partir da área de negócio. Esse desafio pode partir de uma necessidade de crescimento, de uma necessidade de eficiência, ou mesmo de um desafio de ESG, especificamente em uma das nossas cadeias ou na nossa rede de produção como um todo.
Procuramos a conexão e interlocução com as startups; as startups podem, então, se relacionar com a Nestlé, a gente concebe o piloto em conjunto, desenvolve o piloto, e depois, a área de negócio consegue absorver, porque a gente não vê a inovação como uma área separada, já está bem integrada no negócio.
Por exemplo, o desperdício de alimentos era um desafio aqui. Em 2023, fizemos a conexão com a startup Food to Save, que recupera alimentos que estariam em vias de serem desperdiçados e comercializam no formato de sacola surpresa.
Junto com eles, num período de três meses, comercializamos mais de 5 mil dessas sacolas, evitando 10 toneladas de desperdício. E isso trouxe para o negócio a visão de que essa poderia ser uma rota a ser adotada
Então, o Food to Save hoje faz parte da nossa solução de escoamento, cuja interlocução foi feita por meio do Panela, a nossa ferramenta para a transformação.
Nesse exemplo do Food to Save, tivemos as nossas áreas fabris envolvidas, participando ativamente da construção dessa solução juntamente com a startup e com o time de inovação que trabalha para fazer essa ponte e para provocar também novas soluções, estimular que as áreas de negócio tragam os desafios para que a gente consiga conceber outros protótipos, outras ideias de como lidar com tudo isso.
Aqui, estamos falando dos desafios ligados às pautas ESG, mas é o mesmo modelo para outros desafios da companhia, como crescimento.
Como é a governança da inovação na Nestlé?
Na área de inovação corporativa, a gente busca ser um facilitador das técnicas, das capacidades e dos modelos de como a inovação pode acontecer.
O time de inovação corporativa fica dentro de um time mais amplo, de Business Transformation, que tem também o pilar de dados, o pilar de produtos digitais, de tecnologia da informação, o pilar de estratégia dedicado ao CIT — Centro de Inovação Tecnológica em São José dos Campos, e também ESG. Então, conectado aqui com o nosso time, estão as pautas que a gente entende que serão prioritárias para a transformação do nosso negócio.
Mas as unidades de negócio têm também os seus times de inovação dedicados. E trabalhamos como uma grande unidade integrada que faz conexão com as diferentes unidades de negócio. Como uma área corporativa, também estamos a serviço das unidades de negócio, olhando a capacidade de maneira transversal.
Em inovação corporativa especificamente, o meu time é composto por duas gerências: a de inovação aberta, diretamente responsável pelo Panela e toda a interlocução com startups – e nesse time temos especialistas dedicados em diferentes projetos; e do outro lado, uma gerência que olha inovações de modelagem de negócio, novas oportunidades que podem ser mais orientadas a um horizonte temporal de médio e longo prazo, concebendo o que poderia ser uma nova camada de serviço, uma nova experiência integrada que a gente queira oferecer para os nossos consumidores.
Meu time tem hoje 10 pessoas. Trabalhamos como uma comunidade, temos nossos rituais e encontros em que trocamos práticas, inspirações, definimos algumas pautas e prioridades, e ao mesmo tempo, com bastante autonomia dos diferentes líderes para percorrer a inovação e a experimentação com a agilidade que se faz necessária
Então, existe uma conexão de troca, mas a decisão é tomada por aquele que é o maior especialista naquele determinado assunto, ou enfoque. O que é fundamental da maneira como a gente gostaria de alavancar a cultura de inovação na companhia, uma coisa em que todos participam.
Em inovação corporativa, somos responsáveis por trazer inspiração, provocar a partir do olhar externo, e as plataformas que possam mover essa cultura de inovação mais adiante, como tendências. E aí tem os comitês para poder deliberar sobre quais são as prioridades e de que maneira devemos alocar nosso foco.
Quais os principais exemplos recentes de inovações da Nestlé, seja em processos, produtos, serviço ou modelo de negócio?
Temos diversas iniciativas em andamento. Em produto físico, por exemplo, a experiência desenvolvida pela unidade de negócios de chocolates, com o lançamento do Chocotrio.
É uma abordagem de produto, com sensorial bastante diferenciado, que combina chocolate com biscoito num formato barra, e que está em alta na Europa e nos Estados Unidos. Foi uma inovação bem relevante para nós no ano passado, e demandou aprimorar as linhas de produção da fábrica de chocolates da Nestlé, em Caçapava, durante três anos.
Em cafés, temos uma série de iniciativas de sustentabilidade. Recentemente anunciamos o Projeto Colmeia, em que a gente está ajudando a recuperar a presença de abelhas em lavouras de café para fim de polinização e melhora da qualidade do bioma
Isso é um exemplo de inovação em processo porque tem relação com a produtividade da área. Mas também é sobre esse olhar cuidadoso e regenerativo com as cadeias.
No mesmo ano, foi lançada a edição especial e limitada Colmeia de Nescafé Origens do Brasil. A novidade apresentava uma embalagem que remetia a uma colmeia, e dentro dela, além do café, havia um pote de mel de flor de café, produzido por abelhas que fizeram a polinização nos cafeeiros das fazendas localizadas na Chapada Diamantina (BA) e Serras do Alto do Paranaíba (MG), duas das regiões onde é cultivado o café da linha.
Até o projeto de Nescafé Origens, que usa tecnologia forense e blockchain para mostrar qual é a origem daquele grão de café e portanto fazer um bom rastreio da cadeia. Ele mostra essa conexão entre a cadeia e a qualidade do produto oferecido ao consumidor, além de dar protagonismo às famílias produtoras da marca
De inovação em processo a gente tem bastante coisa acontecendo. Por exemplo, o uso de tecnologia nas fábricas para fazer o controle da qualidade do Kitkat, para ele sair sempre dentro do padrão, através de escâneres visuais, que permitem visualizar o interior do produto, então não sai Kitkat da fábrica sem wafer. E é uma tecnologia desenvolvida aqui no Brasil, e que vem dando resultados tão expressivos que estamos discutindo a testagem inclusive no Reino Unido.
Também há muitos exemplos acontecendo em dados e em produtos digitais. O nosso objetivo com todos esses esforços é entregar a melhor experiência para o consumidor, enquanto caminhamos na direção dos nossos compromissos.
Você mencionou antes a missão da sua equipe de antecipar tendências. Quais, por exemplo?
Existem tendências que são comportamentos que já estão presentes. Por exemplo, um aumento cada vez maior de busca de indulgência na Geração Z, mas ao mesmo tempo uma diversificação enorme do que indulgência significa – pode ser um chocolate, um café gelado, diferentes combinações de sabores e uma dinâmica dentro do caminho que eles fazem ao longo do dia.
Isso nos traz a necessidade de mudar os nossos sensoriais e combinar novas receitas, sabores inusitados e a gente procura atender isso com várias das nossas marcas. Com bebidas prontas para beber e chocolates com sabores incomuns, como Kit Kat Pão na Chapa, essa provocação do paladar. E outros vários exemplos de diferentes regionalidades e sabores do Brasil: caipirinha, jabuticaba.
Isso é uma tendência que inspira nosso olhar de produto, de sensorial. Sabores que brincam com paixões e são ótimos exemplos de conexão com a cultura, que no fim das contas é do que se trata a alimentação
A gente lançou a loja de Chocolatory no Rio [em março, no BarraShopping], teve também uma edição carioca, com KitKat Polvilho, Kitkat Mate com Limão… Fizemos também sabores de música, durante o festival The Town, Kit Kat Funk, MPB, Rock & Roll e Pop, cada um com uma combinação de sabores diferentes, pra tentar pensar “que sabor seria a música”.
Acredito que este é um bom caso de como que a gente procura transcender o que é falar de emoção na alimentação, memória afetiva, psicologia da alimentação. Algo muito importante também é criar novas memórias e novas articulações possíveis e inspirar as pessoas.
Ao mesmo tempo, tem tendências que são presentes já a mais longo prazo, como inteligência artificial e o impacto que ela pode trazer em toda a cadeia não só da alimentação, mas na indústria como um todo – gerar maior eficiência dos processos, inclusive em ESG, aumentar a precisão, resolver problemas que exigem aportes de dados durante a cadeia.
Hoje, tem modelos preditivos que podem impactar a distribuição dos alimentos, até eventualmente a geração de novas ideias. A IA pode alterar muito a forma como os consumidores se relacionam tanto com o conteúdo quanto com as experiências de sabor, inclusive com quanto tempo eles passam dentro ou fora de casa — e isso pode impactar o negócio de maneira bastante transversal.
Outra tendência que vale destacar é a evolução da alimentação para uma abordagem holística, que incorpora o físico, mas também cuida das emoções, das relações, da maneira como as pessoas conduzem e vivem suas vidas, e que mostra que não dá pra recortar o alimento da teia da vida
Muitas vezes a nutrição é o foco, e a parte funcional do alimento é o que está em voga. E muitas outras vezes, ele está inserido em um contexto que tem a ver com a emoção, ou até em termos de visão de mundo. Esse olhar mais ampliado para o papel da alimentação é uma forte tendência, e é algo que a gente está olhando bastante dentro dos nossos planos de inovação e planejamentos.
Também as mudanças populacionais; no Brasil há cada vez mais pessoas em busca de maior qualidade de vida por maior tempo. Vemos um envelhecimento da população, e com isso uma mudança nos domicílios, na maneira como as pessoas estão conduzindo diferentes estágios da vida, o que vai exigir mudanças nessas experiências e nessa visão do que é o papel do alimento em cada fase da vida – e como a gente atende esses diferentes momentos de maneira cada vez mais precisa.
Sem lactose é um ótimo exemplo do que a gente tem procurado incluir cada vez mais no nosso portfólio e feito mudanças para acompanhar tanto as demandas de alimentação quanto as exigências do paladar.
Por exemplo, a nossa aquisição de Pura Vida, que veio na resposta também aos consumidores conectados com essa pauta [categorias sem lactose, sem glúten, vegana]; o lançamento de Nature’s Heart no Brasil, uma marca de princípios muito fortes de saudabilidade…
A gente procura fazer essa integração e usar essas oportunidades para inspirar o que mais pode acontecer no restante do nosso portfólio, entendendo que as necessidades de alimentação são muito segmentadas e muito diversas
Participar das ocasiões de alimentação das pessoas é ao mesmo tempo um privilégio e uma grande responsabilidade. É um privilégio porque podemos oferecer diferentes componentes, desde saudabilidade até muita indulgência.
Recentemente duas notícias envolvendo a Nestlé repercutiram bastante. A primeira foi o lançamento, nos Estados Unidos, de uma linha de alimentos ricos em proteínas direcionada aos milhões de usuários de medicamentos para perda de peso, da classe GLP1, que tem Ozempic como o mais conhecido. A segunda, uma pesquisa da ONG suíça Public Eye que revelou a adição de açúcar em versões de produtos para bebês vendidas em países em desenvolvimento, como o Brasil, diferente das versões vendidas em países ricos e ao contrário do que recomenda a Organização Mundial de Saúde e o Guia Alimentar para a População Brasileira. Como esse tipo de percussão influencia a prioridade dos projetos da Nestlé e pauta a área de inovação?
A nossa escuta atenta é contínua, não ocorre somente no momento onde tem algum estudo pontual. Temos compromissos bem claros e pontos de vista sobre todos esses temas – e a gente continua trazendo essas provocações a cada projeto, a cada reunião.
Então, sim, estamos sempre acompanhando e em diálogo com os consumidores, com os formadores de opinião, com as nossas redes que envolvem também os nossos clientes, parceiros e comunidades de saúde – e isso faz parte da forma como a gente articula todo o nosso pensamento interno
Normalmente vamos olhar se temos um plano estabelecido. Se sim, a gente já vem acompanhando. Se não, isso pode sim gerar novos planos e novas respostas, e conseguir ser responsivo aos contextos — embora muitos dos temas a gente já venha acompanhando com estratégia de maneira consistente em longo prazo.